SENHORA DA ESPERANÇA
O sarrão tinha o que tinha: Pão, figos, vinho, azeitonas.
O Leão deu o sinal, os outros quatro levantaram-se da palha quente e, um após outro, alçaram a pata direita traseira e aliviaram-se na trevisqueira, onde era costume.
Lá dentro, ouviram-se os primeiros sinais de saída, de imediato começaram a apertar de encontro à porta.
- Chega! Chega pra lá!
Aberta a porta, saíram de rompante para a claridade da manhã, de focinho junto ao chão; à porta, ia vendo se todas estavam capazes.
“… E não temais os que matam o corpo e não podem matar a alma, temei aquele que pode fazer perecer no inferno, a alma e o diabo.”
Mal sabia o padre como lhe tinham caído aquelas palavras, atiradas lá de cima do púlpito; parecia que estava a falar mesmo para ele!
Mas contar-lhe, não!
Ainda o excomungava!
Mas as vozes não o largavam. O diabo, ou lá o que era, atormentava-o:
Deixava as romeias vazias penduradas num pau na parede, no outro dia estavam no chão;
Deixava a chave no buraco da parede com uma pedra à frente, para o outro dia estava noutro buraco;
A cada passo ouvia rir, mas não via ninguém e há quatro dias que não obrava.
Tinha sonhado? Não! Qualquer dia estava maluco.
Botou-se ó caminho!
Esperou pela vez. Quando entrou, esteve p’ra se ir embora. A mulher, ou lá o que era, olhou para ele com uns olhos de cor de sangue.
- O que queres?
E ele contou-lhe dos sonhos com o diabo, do que lhe acontecia com os objetos fora do sítio, e finalmente do último sonho - que estava numa encruzilhada à meia-noite e quando olhou para o chão, estava a pisar paus queimados; um redemoinho quase o levantou no ar, e alguém se esteve sempre a rir.
- Conheces essa encruzilhada?
- Conheço!
Depois de sentado, escarranchado num banco, ela sentou-se encostada a ele, por trás, no mesmo banco. Abraçou-o pelas costas e começou numa ladainha que ele não percebia. Às tantas, começou a cravar-lhe as unhas no peito, cada vez com mais força e mordeu-o no pescoço. Parecia que lhe escorria sangue pelo corpo abaixo.
De seguida, ouviu como que um urro.
Queria fugir, mas ela não deixou, tinha-o bem preso; ouviu uma voz, que parecia vir do fim do mundo.
- O que queres maldito? Diz-me!
As mãos da bruxa rasgavam-lhe as carnes do peito, ela gemia e dizia palavras que ele não percebia. Só percebeu – “spe……”, ou “pe……”.
As mãos apertaram-no ainda mais, agora no pescoço, quase o sufocavam. De repente, sentiu-se empurrado para a frente. Como estava tudo escuro, caiu no chão com as mãos a aliviar o pescoço e ouviu:
A voz vinha agora dorida e quase a pedir.
- Sabes o que fizeste! Tens que pedir redenção pelo teu enorme pecado. Vai-te embora, sabes o que tens que fazer.
- Mas eu não fiz nada!...
- Sabes o que fizeste, tens que voltar lá à encruzilhada, à meia-noite e pedires a redenção pelo pecado e obrigares-te a fazer alguma coisa que fique para sempre.
Antes de sair, colocou-lhe uma ferradura ao pescoço, contra o bruxedo.
Cá fora, a caminho de casa, “- rais parta na bruxa, como é que ela sabia! Só o compadre e ele; mas já lá está e, também, era fraco macho.”
Mou dito, mou feito!
- Hoje durmo com elas no Rouço, para começar a estrumar lá a terra.
A mulher não desconfiou, era assim a vida.
À meia-noite estava na encruzilhada, batia o dente, apesar da noite temperada. Começou a ver figuras de pessoas com carantonhas disformes e de animais, por todo o lado. Rodearam-no, ele a rodar também, estava a ficar zonzo. Uma cara vermelha com cornos de cabra veio contra ele, conseguiu desviar-se; outra, que parecia um rato gigante, quis fugir, mas não conseguiu sair do redemoinho. Sem saber o que fazer, lembrou-se da palavra da bruxa e começou:
– Spe……, spe…… –.
Os demónios começaram a mingar e a contorcer-se; parecia que tinham dores em todo o corpo e mingavam a cada volta, estavam quase junto ao chão. De repente, começaram a rebentar um a um, parecia o fogo do Cabeço.
……………………………… XXX ………….…….…………
Então, começou a sentir-se:
- Eduardinho…! Eduardinho…!
- Que é? Onde estou! Onde estou? Onde está o Diabo? Tenho que falar ó Sr. Padre!
- Diabo? Ai meu rico homem, que agora perdeu o juízo! Não morreu da doença, morre-me da cura! Ai que Deus Nosso Senhor nos ajude!
- Tenho que falar com o Sr. Padre, já! Que aconteceu?
- Estás a arder em febre há três dias! Caíste do cavalo abaixo, ali no Pinhal e ficaste sem sinal de vida! Já cá esteve o Sr. Doutor e que não havia nada a fazer, a não ser rezar. Falou numa coisa que te deu na cabeça! Ia chamar o Sr. Padre para te dar a extrema-unção, que desde ontem que não te sentimos o bafo!
- É um milagre! É um milagre!
Passadas duas semanas e já mais restabelecido, embora ainda lhe doesse a cabeça:
- Bom dia Sr. Eduardinho, isso esteve mal!
- A quem o dizes.
Matutava no sonho que tinha tido e como se tinha curado. “- Ele há cada uma!... Nunca fui pastor, que fado aqui inventei!… Foi Deus que me salvou.”
Proprietário maior na terra, mandou construir uma pequena ermida numa terra sua, junto à encruzilhada.
- Padre Anselmo! Ouvi-o falar na missa numa palavra, “spe” ou só “pe”. É latim?
É na verdade latim, Sr. Eduardinho, é spe, spe, que quer dizer esperança.
Esperança! Era mesmo assim que se iria chamar a pequena capela.
ESPERANÇA, NOSSA SENHORA DA ESPERANÇA!