Lendas e Historias

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Cabeça Gorda

Ninguém lhe sabia bem o nome, mas como tinha um enorme papo que lhe envolvia o cachaço, ficou o “Cabeça Gorda”. Era um homem mau, dizia-se em segredo que tinha matado mais do que um homem, lá p’rás Beiras. Era alto, seco e tinha uma queimadura por baixo do olho direito; dizia-se que tinha sido da pólvora, quando tinha disparado; fazia sentido.

Falava pouco e quando falava era com a boca semifechada, ou seja, por entre dentes. Vivia com uma mulher que ele dizia criada, muda, dizia-se que lhe tinha cortado a língua, para não a ouvir.

Quando chegou, tinha acabado de morrer o Jeremias Malheiro. Mal foi enterrado, os filhos, mortos de fome, trataram logo de vender a única terra que o pai tinha; grande, mais fragas que terra. Ninguém lhe pegava, o Cabeça Gorda comprou-a.

O raio da terra nem nome tinha, era uma ladeira onde a cria mal se tinha de pé, ninguém a queria lavrar. Metida entre a Maria Belida e a Maria Paz, no lado do monte que dá para Santa Comba, chegava mesmo ao alto do cabeço, que defendia o povo dos ventos gelados da serra de Bornes. Despida de vegetação, só as ervas mais resistentes ali floresciam. Por estas e por outras, só servia para os gados, mais as cabras que as ovelhas. Nem fazia parte de nenhuma volta, todos os pastores passavam por lá.

Aconteceu ao Romário Doninha, podia ter sido outro pastor qualquer. Sentado em cima duma fraga, comia um cibo de pão com chicha gorda. Os cães olhavam para ele, à espera do que lhes ia caber, uma côdea que fosse. Um deles, o Fadista, levantou as orelhas,” - vem aí alguém!”

Afastados os cães:

- Avisa o resto dos pastores que a partir de hoje não quero ver por aqui nenhum animal a pastar!

O Doninha sentiu um formigueiro na espinha, engoliu em seco, só acenou com a cabeça; o raio do homem metia medo.

À noite avisou o patrão:

– O “Cabeça Gorda” não quer nenhum gado na terra que comprou aos filhos do Jeremias.

- É maluco ou quê? Sempre ali passou gado!

- Está avisado, pela minha parte não as boto mais para lá, o homem mete medo.

O aviso correu depressa. Uns sim outros não. Ficou no ar uma tensão que a qualquer momento podia fazer faísca,

Domingo, cria acomodada, alguns visitantes tinham chegado. Viam-se alguns burros e cavalos presos com mantas novas.

As tabernas estavam cheias, os copos eram despejados rapidamente. As conversas, com o calor do vinho, subiam de tom e de agressividade.

- Mas quem é ele? Nem de cá é! As minhas ovelhas continuam lá a passar!

- As minhas também! Já disse ó pastor!

O taberneiro continuava a encher os copos, avermelhados do vinho e da pouca lavagem; eram enxaugados num balde e serviam o próximo, as conversas continuavam acesas.

- Que me diga a mim que o gado não pode lá passar!

Quase todos tinham a mesma ideia, a tarde estava abafada pressentia-se a trovoada dos céus e da terra, o vinho tolda as ideias, faz do cobarde um herói.

- Eu até lhe como os fígados!

- Vem comê-los, estão aqui!

Foi como se tivesse caído uma faísca ali no meio deles! Alguns homens que estavam sentados levantaram-se e foram para fora do soto.

Felício tinha quatro filhos, dois gémeos de 20 anos e duas raparigas de 16 e 18; era um bruto. Pacato, mas tinha mau vinho, e estava com os goldres cheios dele. A mão direita abraçou a peleira que estava no bolso e tirou-a. O “Cabeça Gorda” estava a dois metros dele, calmo, via-se que estava habituado a estas andanças.

O Manuel Pessanha tentou acalmar.

- É melhor desandar! - Avisou-o o “Cabeça Gorda”.

O Felício atacou, a navalha rasgou a camisa e fez um pequeno golpe no braço do “Cabeça Gorda”. Quando se voltou sentiu uma porrada na cabeça, ficou atordoado, o vinho também tinha culpa. Enquanto se recompunha sentiu-se impelido pelo ar e bateu de barriga em cima da mesa onde se jogava o chincalhão. O “Cabeça Gorda” aproximava-se agora dele com uma navalha na mão.

- Alto lá! - Era o regedor da terra; - Você não faz mais nada.

O Cabeça gorda olhou pra ele e saiu.

Os gritos das mulheres terminaram a tarde de domingo.

Os gémeos esperaram por ele aos Lameiros do Monte, escondidos por detrás duns zimbreiros; quem subia de Valbom para Benlhevai não os via. Quando passou, atacaram; a primeira foiçada foi direitinha ao pescoço do “Cabeça Gorda” e quando se virou sentiu uma sacholada na cabeça. Ainda atingiu um deles com o marmeleiro que trazia na mão, mas sentiu a lamina fria a trespassá-lo pelas costas. Caiu de joelhos, já não sentiu a última sacholada no alto da cabeça que lha abriu como uma romã.

- Onde foi?

- Foi ali à Cabeça Gorda, ao fundo da terra do “Cabeça Gorda”; rais parta na terra, que só traz desgraças!