GORGOLÃO
“Santa Maria, Mãe de Deus, rogai por nós, os pecadores …”
“- Ai meu Pai do Céu!”
Os roncos poderosos do trovão faziam tremer todas as almas daquela terra.
Era noite escura e de repente ficava tudo iluminado pelo clarão; seguia-se o rugido tenebroso e assustador, a que todas as mulheres respondiam rezando o que sabiam.
Em círculos sobre o povo, a trovoada parecia não se querer ir embora; vinha acompanhada de avassaladores rios de água que tudo galgavam, parecendo ter pressa de chegar a algum sítio.
Todas as mãos de mulher estavam envoltas pelo rosário, que dedilhavam com a rapidez com que invocavam o nome do Senhor; a fé tocava aqui o limite do desafio, entregava-se o destino ao Criador; a ele, tudo era encomendado e oferecido: rezas, oferendas, promessas, tudo era permitido.
A falta de defesa contra este inimigo tornava a vulnerabilidade mais visível e simples.
Demorou, mas lá se foi. Purificação de Jesus guardou o rosário e aninhou-se debaixo da manta de farrapos junto do homem, Manuel Almendra, que dormia a sono solto; nem o barulho da trovoada o tinha inquietado, bem lhe bastava a dor que trazia a medrar no odre.
Cedo, cria junguida, aguilhada ao ombro, desandou; os caminhos estavam lambidos de tanta água correr, mas para onde ia, a terra era difícil de encharcar.
À Cheira sentiu o primeiro vómito, “- rais parta que isto não me passa”, já no Calveiro, veio-lhe à boca um sabor a fel.
“- Mas ainda não comi nada!” Trazia no bolso uma côdea para comer com figos, que para ali já os havia.
Mas não passou. Mais abaixo, que era sempre a descer, ia na direcção de Santa Comba, teve que se baixar de repente; parecia-lhe que se lhe arrancavam as tripas, veio-lhe à boca um gorgolão de sabores ácidos que saíram em torrente pela boca fora, tinham várias cores e viu que entre elas havia restos de sangue; parecia-lhe já coalhado.
Baixou-se na fontela que tinha por baixo da figueira e encheu-se de água.
“- Pode ser que isto passe!”
Sentiu-se fraco, sentou-se sobre uma pequena fraga já à entrada do tapado; a cria junguida mordiscava nas bordas, esperando ordens para começar.
Tentou levantar-se, mas teve logo que se voltar a sentar; a barriga doía-lhe e sentia-se sem forças, os braços e as pernas pesados, o segundo gorgolão veio ainda mais forte, nem sentiu o sabor e um jato de várias coisas saiu-lhe da boca em grande quantidade, era uma aguadilha esverdeada e ensanguentada. A cabeça começou a ficar tonta, sentia-se a perder o tino.
“- Tenho-a boa, aqui sozinho!”
- Manuel! Manuel!
Tentou abrir os olhos, que teimavam em se fechar.
- O que tens? Que é que te dói?
- Gorgolão! Gorgolão!
Lieta olhou para os vómitos ali lançados e torceu o nariz. “ - Estamos mal...”
A muito custo, conseguiu sentá-lo na parte de trás do carro, encostado aos estadulhos e lá virou a cria em direcção ao povo.
- Purificação! Purificação!
- Que é? Ai meu Nosso Senhor, o que aconteceu?
- Olha, encontrei o teu homem caído à entrada do vosso tapado; olha que ele não está bem.
- Ele já anda assim há uns dias, não come nada e alguma coisa que se lhe engole, deita fora. Ele disse-te alguma coisa?
- Eu só lhe percebi “gorgolão”, vi no chão o que vomitou e não gostei.
Veio mais povo e lá o conseguiram meter na cama.
Dali só já saiu para o cemitério.
- O que lhe deu?
- Diz que foi um gorgolão!
- O quê? No Gorgolão?
- Numa terra que ele tinha ali por baixo do Calveiro e parece que foi um gorgolão que lhe deu e o abafou.