Lendas e Historias

Lendas e Historias PT

(lire en français)

Muro

MURO

A doceira, que tinha a banca debaixo do olmo, bem lhe gritou:

- Olhe que o estandarte não passa!

Mas o Jeremias ia tão emproado com o estandarte nas mãos, que nem ouviu o grito da velha. Só quando sentiu uma força que o tombou para trás é que deu por ela. Foi tal o reboliço, que o estandarte acabou por cair em cima do pálio e, com a pancada, o Santo Lenho saltou das mãos do padre e acabou nas mãos da desinfeliz da Maria Esperançosa, tolhidinha de ambas as pernas por causa de uma meningite que a atacou, ainda garota, e que de mãos postas rezava ajoelhada ao passar a procissão. O povo ainda ficou parado a olhar, na esperança do milagre, mas a Esperançosa continuou tolheita e o Jeremias, no tombo, deu um mau jeito no pulso. Ainda tentou, mas não conseguiu erguer o mastro. O Padre disse que era melhor ser outro a levar o estandarte. Mais ninguém se aleijou e a procissão seguiu caminho.

Acontecimentos destes não passam tão depressa, ainda mais festa, pessoal de fora. Tanto trabalho, para acontecer aquilo.

Contente, estava o Feliciano da Ana.

Desde o ano passado que o sacristão lhe tinha prometido o estandarte na festa. Mas, na última da hora…

“- Que a Tia Maria das Dores tinha prometido pelo filho…”

“- Que trazia coisa ruim por dentro e que se curou…”

“- Que tinha feito a promessa em frente do altar da Nossa Senhora de Fátima e tinha que a cumprir…”

Bem lhe custou, mas não tinha promessa para cumprir; as promessas eram sagradas. Ele só queria fazer ver, e mais à Otília, que já andava de olho nela há muito tempo. Mas pronto, roído de inveja, teve que se render. Agora, isto não lhe podia ter calhado melhor.

- Eu bem avisei, ele não tem pulso para o estandarte.

“- Mas que sim! Que tinha!”

Aí está a prova!

Foi a procissão toda a remoer naquilo.

A conversa manteve o tom, que fica mal numa procissão.

“- Deviam ter arranjado alguém com mais cuidado; a mãe que não prometesse; mas deixar cair o estandarte, não havia memória, quem ficava mal era a terra”.

O Feliciano envenenava cada conversa que ouvia. “- Bem tinha avisado, que até lhe parecia que o Jeremias tinha algum defeito… Não segurar o mastro!...”

O Jeremias ficou a ver a procissão seguir, e a ouvir aqui e ali.

- O que te aconteceu?

- Não vi a corda!

A remoer na conversa do Feliciano, chegou a casa. Ao empurrar a porta, ouviu:

- Oh comadre! Oh comadre! Eu prometi à Nossa Senhora, que nos ajudou, e agora esta desgraça; promessa não cumprida é mau sinal.

A comadre concordava, as promessas eram sagradas e para cumprir. E não conseguir levantar o estandarte, e o povo todo a falar…

- Como posso pedir a Deus para nos ajudar?

E chorava.

Já não entrou. Pela frincha da porta viu a cara da mãe. Não era mesma! Onde ele sempre viu alegria, decisão, coragem, certeza, perfeição, via agora desgosto, pranto, descrença, amargura e muita tristeza. E a culpa era dele.

Eram cinco irmãos, ele o mais velho. O pai tinha morrido no inverno passado, e, logo à morte do pai, adoeceu ele. Três meses de cama, despachado do médico. A mãe nunca desistiu à sua cabeceira, era sempre alegria, crença, coragem, decisão. Prometeu, e ele não cumpriu, nem uma pequena parte.

Ficou atordoado com a visão, um turbilhão de coisas passou pela ideia, ficou como que paralisado, não se conseguia mexer, estava adormecido. Começou a subir-lhe pelo corpo acima uma profunda tristeza e uma grande desilusão, nunca se tinha sentido assim. Onde só via alegria e perfeição, agora via miséria e desonra.

Virou costas e começou a andar sem destino, os passos levaram-no para fora do povo. Era já noite, o caminho era só fragas. Subiu para cima de uma espécie de muro, olhou para baixo. Era fundo e as fragas esperavam aguçadas.

A última visão foi o rosto da mãe que viu pela frincha da porta.

Deixou-se cair no vácuo, enquanto uma lágrima lhe molhava o lábio. Ainda sentiu o sabor, era salgada.

- Que desgraça! O homem e agora o filho.

- Onde foi?

- Foi ali para baixo, naquela espécie de muro que tem uma ribanceira por baixo.