A noite estava escura como os tições. Os cães, atiçados pelo dono, desdobravam-se nas investidas contra os irmãos selvagens e esfomeados. A violência das mordeduras replicava-se nos latidos, por vezes de dor, dos cães.
Mas de novo investiam, leais ao dono, contra o inimigo brutal e sanguinário. Era uma luta desigual entre a fome e a lealdade, o inimigo era letal, atacava onde podia matar, o pescoço. Aí os cães estavam salvaguardados por coleiras cravadas de pregos afiados, onde o lobo não conseguia penetrar. Era uma luta que se repetia inúmeras vezes durante todo o ano, mas esta diferia pela agressividade e brutalidade extrema dos lobos.
Simão da Adozinda tentava a todo o custo que o gado não tresmalhasse e ele não perdesse o controlo. Já tinha sofrido outros ataques, mas como este não se lembrava. Deviam ser seis a sete lobos, tinham entrado de rompante no meio do rebanho, no intuito de o dividir.
Simão tinha cinco cães grandes e fortes, mais uma cachorra ainda nova, mas a luta era desigual. Estava longe do povo, tinha esperado demais para que comessem e agora mais nenhum pastor andava por perto para pedir ajuda.
E o pinheiral onde tinha a corriça ainda era longe.
“- Valha-me Deus! Ai minhas ricas ovelhas! Se ninguém me ajuda, estou perdido!”
Sentiu-se desamparado, mas não podia perder o norte. Tentava acudir ao gado de ponta a ponta. Elas, assustadas, juntavam-se cada vez mais, sendo quase impossível fazê-las andar, ficavam como que adormecidas com o ataque dos lobos.
De repente viu o malhado, o seu melhor cão, deitado com uma enorme dentada num quarto e a gemer. Simão gritou-lhe e ele voltou à luta.
Simão berrava, para tentar assustar os lobos, mas eles eram muitos e esfomeados. De repente viu o que não queria ver, mais de metade do gado começou a correr em direcção à corriça. Era o que ele não queria. Até chegar lá, os lobos iriam matando pelo caminho, que ainda era longo.
De tanto berrar, alguém ouviu. Era o Manuel Pereira que vinha da Trindade, tinha ido ao petróleo e acabou por se empetrolar no soto do Pé Torto. E lá vinha caminho acima, quando ouviu berrar.
- Simão! Simão! Sou eu, o Manuel!
- Ó Manuel, fica-me aqui com estas, enquanto me bou atrás das outras, senão os lobos matam-mas todas.
- Vai lá, homem! Vai com Deus!
Simão, de cajado na mão e com os cães a acompanhá-lo, desandou em direcção ao pinheiral onde tinha a corriça, era sempre a subir. Começou a vê-las, caídas, ainda a sofrer com as golas furadas, três ali, duas além.
“- Ai, meu Deus! Que desgraça!”
Os cães, açulados por ele, investiam sobre o escuro, cansados, mas esforçados, davam tudo o que tinham, até a própria vida pelo dono.
Mais à frente, mais duas, já lhe tinha perdido a conta. Os cães continuavam a luta, sentiam o inimigo próximo, Simão já quase tinha perdido a voz de tanto berrar.
Às Feiticeiras, sentiu barulho.
“- É na corriça! Elas têm a porta fechada e matam-mas ali todas!”
Mais um esforço de gritos e açulamento dos cães, a quem pedia o derradeiro sacrifício, eles avançavam, cautelosos, mas destemidos.
Por fim chegou. As ovelhas, assustadas, empurravam-se contra a porta fechada.
A muito custo, Manuel abriu a porta, mas ainda viu mesmo ali dois lobos, que de pé cravavam os dentes numa cordeira das novas e a levavam com eles, para o meio do pinheiral, que ali era denso.
Manuel, de pau no ar, e com os cães, investiu na direcção deles, mas levaram-na. Os pinheiros formavam ali uma barreira e os cães cansados não se aventuraram naquele denso matagal.
Finalmente conseguiu meter as que ali estavam na corriça. Fechada, regressou aos Baloutos e com a ajuda do Manuel Pereira lá trouxe o resto do rebanho e algumas das feridas que ainda conseguiram acompanhar o gado.
- Oh Simão! A corriça aqui neste pinheiral, tão longe do povo e só aqui esta corriça...
- Oh Manuel, é o que há! Que hei-de fazer? Não tenho onde as meter e ainda estão aqui por favor, que o Francisco da Zilda já me disse que precisa dela.
- Fica muito fora do povo.
- Pois fica e ainda por cima aqui, no meio deste pinheiral.