NOVAL
O surro que acumulava nas partes visíveis do corpo faziam dele como que um pergaminho antigo, enrugado e amassado. Os dias eram passados num terreno maninho. Desde que lhe tinham dito que aquela terra era estéril e não tinha dono, que ali passava os dias a batalhar, contra ventos frios e as poucas ervas que ali medravam.
Quem passava ria-se. “- Tem bom lombo para esgatafunhar ali no rosso. É maluco, dali não sai nada, nunca saiu!”
Todos o conheciam pelo Sem Alma, tinha sido o próprio padre Justino que o tinha batizado, quando passou o Arcanjo S. Miguel na bandeira das Santíssimas Almas e ele nem se levantou da pedra em frente ao soto, onde estava sentado.
O Faztudo bem o advertiu:
- Levanta-te, que vai a passar a Bandeira das Almas!
- Vejo-a bem, sentado.
Ninguém lhe conhecia família ou amigo, e como aquelas terras eram baldias, incultas e arregatadas das trovoadas e do contínuo ribeiro que ali passava, o que se via eram pedras e pouca terra, ninguém se importou do amanho da terra pelo Sem Alma.
Distava do povo uma boa hora de caminho. Era ali que passava todo o santíssimo dia, a noite era passada na loje da Celestina, viúva, quase cega e surda que nem uma porta. A primeira vez que o viu pareceu-lhe um irmão que tinha ido para o Brasil, a partir daí o Sem Alma repartia a loje com uma burra, alguma coisa que comia era no quinteiro, debaixo de uma enorme laje, onde a Celestina secava figos e cricas.
Tinha o faro apurado como cão de caça, raro era o dia que não trazia algum láparo ou perdiz que apanhava nas aboizes que armava com superior mestria. Conhecia as camas das lebres e untava muitas vezes os beiços com os borrachinhos de variada passarada. De tudo o que trazia, deixava parte na soleira da porta da dona, que ela agradecia, tratando-o pelo nome do irmão desaparecido.
- Ó Albérico, onde vais desencantar tanto bicho?
Ninguém lhe conhecia vícios ou amizades, a alguma saudação respondia com uma espécie de grunhido.
- O Sem Alma, já lá tem um poço!
- Farta-se de acarrar e enterrar lá mato!
- O Sem Alma anda a emparedar tudo, já parece um tapado!
- Aquilo, nunca vai dar nada! É frio, abechieiro e a terra não emprenha, é maninha!
As opiniões eram diversas.
Mas o Sem Alma não os ouvia nem lhe interessava a ladainha do povo. De onde tinha vindo a terra também era fraca, mas bem mexida, aumentada e alimentada, tinha que dar fruto, e assim foi.
A Umbelina, que sabia onde o renovo começava mais cedo e trazia o termo debaixo de olho, foi a primeira a desvendar a coisa.
Não dava nada!
A terra era fraca!
Era baldia!
- Vão lá ver agora! É um noval autêntico, tem lá tudo, beterrabas, cebolas, botelhas, junto à parede do fundo tem lá couves que enchem uma canastra!
- E melancias?... Da terra maninha fez um perfeito noval, até dois pessegueiros lá tem!
Um a um começaram a espreitar o Noval do Sem Alma.
- Como é que ele fez aquilo? A terra nunca prestou para nada…
“- Trabalhou-a!”, dizia o Manuel das Dores, que tinha corrido algum mundo. “- Nós aqui é que estamos habituados a fazer sempre o mesmo e nos mesmos sítios, mas é assim que dos baldios e terras fracas se fazem novais. Com trabalho!”