Desde aquele dia que não lhe saía da ideia. “-Ele era bem capaz de o fazer”.
“- E ele o que fazia? Desgraçava-se? Encolhia-se e tudo abusava dele?... O que fazia?”
Esta dúvida trazia o Cipriano atormentado, ele era bem capaz de o fazer, medo não tinha, nunca teve.
“- Mas, e depois? Prisão o resto da vida? Fugir para fora e nunca mais voltar?”
A ideia roía-o todo por dentro, perdeu a vontade de comer, só a trabalhar descansava a cabeça. À noite, então, era um zumbido na cabeça, que tinha que se levantar e ir fazer qualquer coisa à luz da candeia.
Sempre ali tinha lavrado, lembrava-se bem de o pai lhe dizer que a terra era deles. Os castanheiros, os dois castanheiros, não, mas a terra era e sempre a tinham lavrado. Era um bico pequeno, é verdade, mas era dele.
Estes negócios de comprar árvores em terra alheia nunca deviam ser feitos, é verdade, mas havia necessidades que por vezes obrigavam à venda; quem comprava queria sempre o melhor.
Então, nos sobreiros, era uma miséria. A chuparem o sangue da terra, os donos da terra a lavrar e estrumar e quem gozava eram os sobreiros e os donos deles que nem sequer eram de cá, viviam bem longe daqui. Mas tinham dinheiro e em momentos de aflição compravam ao desbarato. Com estas regalias, eram arrobas e arrobas de boa cortiça. Os sobreiros andavam bem assuados, bem podiam engrossar a cortiça. Mas o negócio tinha sido feito assim, e pronto.
Muitas vezes até os feitores deles, que geralmente eram cá da aldeia, marcavam sobreiras novas como se fossem deles, quando não eram. Acabavam por ficar marcadas, aquilo nunca mais acabava; era lavrar e estrumar para terem o cereal, e os sobreiros lá plantados é que gozavam com o trato; via-se na cor deles e nas arrobas de cortiça que dali saíam.
Passou na terra. Não queria passar, mas parecia que o diabo o tentava. Ficou a olhar para o cibo de terra que já precisava de ser lavrado e ficou ali parado, a cismar. Saiu-lhe uma carvalhada, ele que nem era de as dizer, mas caraco, aquilo era dele, tinha sido do avô, do pai, e agora era dele.
E agora vinha aí um, que nem da terra era, a dizer que aquela terra dos castanheiros lhe pertencia, porque tinha comprado os dois castanheiros com terra.
Ele ainda lhe disse: “- Olhe que não, os dois castanheiros são seus, mas a terra é minha. Já era do meu avô, do meu pai, agora é minha e vou lavrá-la como sempre o fiz.”
O homem, parece que ficou maluco. Puxou por uma navalha, encostou-lha ao pescoço:
- Se mexes na terra, mato-te!
Assim, sem mais nem menos. Ficou sem pinga de sangue. Nunca foi homem de barulhos, nem de copos, nem de sotos; em toda a vida só pensou no trabalho, sempre respeitou toda a gente.
Lá desandou sem abrir a boca, a matutar naquelas palavras. Ficou tão desnorteado que a mulher teve que o ir chamar à loje, para comer. Estava lá sentado em cima de um feixe de milho, a desmaçarocá-lo e tinha ficado com uma cana na mão, a olhar para o ar.
- Tu que tens, homem? Anda comer.
A partir daí a cisma trazia-o maluco; tinha que fazer alguma coisa, era um matraquear constante na cabeça.
Ainda pensou em esperá-lo e à falsa fé cortar-lhe o cachaço com a fouce, mas o feitio dele não era esse, e já estava a ver:
“- Quem diria! O Agripino, que parecia que não fazia mal a uma mosca e matar assim um homem à falsa fé!”
“- É preciso ter curjidade! Quem imaginava uma coisa destas?”
“- Sempre um bô serás, e agora isto!”
“- E por um cibo de terra… morremos, e a terra cá fica toda!”
“- E agora, vai para a cadeia, e fica melhor? Não!”
A terra era dele, e ia lavrá-la! Aparelhou a cria, charrua em cima do carro, e ala. Na terra, pôs os burros à charrua, e quando ia dar o sinal à cria para começar a decrua, parou. Não era capaz, não sabia o que sentia, mas era qualquer coisa que mexia com tudo o que ele era.
Olhou para os estadulhos do carro, trazia lá sempre uma corda para atar alguma lenha ou o que fosse preciso. Pegou nela, olhou para uma castinceira nova que estava ali, lançou a corda por cima dum ramo mais alto, subiu para a castinceira; fez uma laçada, passou-a pelo pescoço, mediu o espaço até ao chão, ficava pendurado, lançou-se no espaço; ainda sentiu uma espécie de esticão e uma leve falta de ar.
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- Onde foi?
- Numa castinceira, por cima do Prado, onde há ali muitas castinceiras, ao pé dos castanheiros dele.