Era um domingo de agosto, igual a tantos outros. O calor era sufocante, o ar adivinhava trovoada. No Terreiro, debaixo dos olmos que cercavam os tanques de lavar, os ciganos faziam cestos de verga e deitavam pingos na latoaria.
- Uma esmolinha, pela alma de quem lá tem.
O pregão repetia-se a todas as portas de cada terra. As pedintes, geralmente mulheres descalças, mal-encaradas, efeito da sujidade e da magreza, acompanhadas de crianças sujas, descalças e seminuas, percorriam as aldeias à procura de comida ou qualquer outro tipo de ajuda.
Na maioria das portas, encontravam miséria igual ou pior à de quem pedia. Então vinha a resposta que o pedinte menos desejava:
- Que Deus a favoreça.
A miséria seguia para a porta seguinte, agradecendo na mesma, apesar de nada ter recebido.
No Terreirinho juntavam-se bois, burros e machos que desordenadamente bebiam no tanque enormes quantidades de água. De seguida, ali no quinteiro grande, os burros esponjavam-se, levantando grandes nuvens de poeira, ao tentar a manobra sempre difícil de, deitados no chão, conseguirem virar-se sobre a espinha dorsal, o que era conseguido ao fim de algumas tentativas.
De repente, o céu, até aí meio fosco e avermelhado, tingiu-se de cinzento e desabou uma carga de água acompanhada de faíscas que rasgavam o céu com trovões assustadores, mesmo por cima do povo. As mulheres murmuravam rezas, pedindo a proteção divina. A água era tanta que lambeu a palha de todos os caminhos, juntando-se no fundo do povo, onde, com a grande quantidade de palha amontoada, se formavam pequenas barragens, que alagavam a rua e entravam pela soleira das portas mais baixas.
Tão depressa chegou como partiu, de repente o calor sufocante instalou-se de novo, prevendo nova tempestade.
No campanário os sinos estavam em silêncio, aproximava-se a hora em que tocariam para juntar o rebanho na missa domingueira. De roupa lavada, já muitos homens esperavam no adro, enquanto conversavam e esperavam o toque. As mulheres, em casa, aflitas com o tempo, alisavam a roupa dos filhos, fazendo-os rodopiar, à cata de algum defeito.
De repente o ar é cortado por um grito lancinante, seguido de outros cada vez mais vibrantes. É prenúncio de desgraça, todos se olham, procurando o sítio de onde vem o desespero.
- Vem de além!
Todos olham na direção indicada, nada veem, a não ser o monte de sobreiros, a seguir à Eirinha.
Alguém toca a rebate, o povo estremece, vários vão a correr, ao encontro do ponto indicado, em grande sobressalto.
O que veem, e ainda mais o que cheiram, nunca mais vai ser esquecido:
Homem e besta, parecia que estavam abraçados. O homem tinha os braços em volta do pescoço do animal e assim ficaram, de pé. Estavam esturricados e negros como os tições do lume, ninguém conseguia distinguir quem era, só a viúva sabia que o homem tinha prendido ali o burro, e quando tinha começado a trovoada, a avisou que o ia buscar. Viam-se dois enormes tições de pé e o cheiro a carne queimada feria os narizes de todos. O cheiro invadia os peitos e metia-se na roupa.
O homem tinha, no que tinha sido a mão, restos de alguma coisa ainda fumegante, era a cabeçada do jumento. Estava a pô-la, quando o raio os atingiu. Na perna traseira do animal ainda fumegava o que eram os restos de corda queimada, por ali ter estado preso.
O cheiro permaneceu naquele local por muito tempo. Quando ali passavam, tinham sempre o mesmo desabafo, seguido do sinal da cruz:
- Que Deus lhe tenha a alma em descanso, mas parece que ainda anda aqui o cheiro.
Quando falavam daquelas terras, onde também havia algumas oliveiras, diziam sempre que era a terra que cheira.
- Andaste a agradar aonde?
- Ali na Cheira.