“Ano de nevão, ano de pão.”
Então bem podia ser este! Já era o terceiro, e era cada um… caía cada geada que até as olmeiras se imbelgavam, pareciam o lombo do burro do Germano quando lhe assentava a aguilhada a todo o comprido. “- Até te imbelgas!”.
As mulheres revezavam-se a cozer enormes fornadas de centeio, para aproveitar o forno quente, que a lenha não abundava, até os zimbreiros andavam lembidos.
Cipriano do Vale, era o nome dele, mas todos o conheciam pelo Vale Frio. Vale porque era o nome dele; Frio porque a terra que tinha lá para o Marco, dizia ele, era o Frio do Vale; mas como não soava bem, começaram a chamar-lhe Vale do Frio.
Também utilizava sempre a palavra “frio” na expressão utilizada antes de cada palavra, que lhe vinha da vida passada atrás das mulas, do frio rapado nas idas e vindas e do calvário passado na ladeira da Farrapa, a caminho do Cachão.
- O ti Vale Frio, este ano, como se arranja?
- Chó mula, arre que está frio! Mal rapazes, mal. - e seguia caminho.
Velho, da idade do mundo, gasto pelo tempo, vivia só numa casinha no limite da terra, de onde se esgueirava pela hora da sesta sem que alguém o pressentisse a catar fruta ou hortaliça nas hortas, perto do povo. Ninguém lhe conhecia familiar vivo; os mais velhos diziam que tinham ouvido dizer que a malina lhe tinha levado mulher e filhos, e que, quando mais novo, ganhava a vida como azeiteiro a acarrar nos ingarelos de duas mulas, almudes de azeite para o Cachão.
Quando lhe perguntavam pelo passado, ficava a olhar para o vazio e lá vinha a velha expressão:
“- Chó mula, arre que está frio! O que lá vai, lá vai.” - e ficava-se por aí.
Quando a galga apertava, o que acontecia muitas vezes, e nada havia para rapinar nas hortas, arrastava-se pelo termo no rasto dos pastores, à espera de algum coelho ou texugo que os cães matavam. Espiava-os de longe, deixava-os acender a fogueira, e quando lhe entrava pelas bentas o cheiro do refugado puxado:
- Chó mula, arre que está frio! Ei caraco, não vos fazia aqui! Que estaindes a estrujir? Cheirar, bem cheira!
- É texugo! Foram os cães do Tonho Maluco que o mataram.
E dava o lamiré:
- Olhai que ali naquela terra dos Macedos, nos Lameiros do Monte, nas fragas, o texugo criou lá e ainda lá estão. Aquele fraguedo só tem duas saídas; eu é que já não tenho pernas para la ir armar o laço.
Era quase sempre verdade, conhecia o termo como ninguém. E de caça, então, era especialista. Falava-se das manhas de outros tempos, que esperava que os cães levantassem caça, e ele a armar o laço e as aboízes.
Os pastores agradeciam e como não desandava:
- Se nos quiser ajudar…
Não se fazia rogado. Puxava pela peleira, cortava um quarto do centeio e molhava-o abundantemente na gordura do texugo.
- Chó mula, arre que está frio! Ah rapazes, que isto está raúno!