MURO
A doceira, que tinha a banca debaixo do olmo, bem lhe gritou:
- Olhe que o estandarte não passa!
Acontecimentos destes não passam tão depressa, ainda mais festa, pessoal de fora. Tanto trabalho, para acontecer aquilo.
Contente, estava o Feliciano da Ana.
Desde o ano passado que o sacristão lhe tinha prometido o estandarte na festa. Mas, na última da hora…
“- Que a Tia Maria das Dores tinha prometido pelo filho…”
“- Que trazia coisa ruim por dentro e que se curou…”
“- Que tinha feito a promessa em frente do altar da Nossa Senhora de Fátima e tinha que a cumprir…”
Bem lhe custou, mas não tinha promessa para cumprir; as promessas eram sagradas. Ele só queria fazer ver, e mais à Otília, que já andava de olho nela há muito tempo. Mas pronto, roído de inveja, teve que se render. Agora, isto não lhe podia ter calhado melhor.
- Eu bem avisei, ele não tem pulso para o estandarte.
“- Mas que sim! Que tinha!”
Aí está a prova!
Foi a procissão toda a remoer naquilo.
A conversa manteve o tom, que fica mal numa procissão.
“- Deviam ter arranjado alguém com mais cuidado; a mãe que não prometesse; mas deixar cair o estandarte, não havia memória, quem ficava mal era a terra”.
O Feliciano envenenava cada conversa que ouvia. “- Bem tinha avisado, que até lhe parecia que o Jeremias tinha algum defeito… Não segurar o mastro!...”
O Jeremias ficou a ver a procissão seguir, e a ouvir aqui e ali.
- O que te aconteceu?
- Não vi a corda!
A remoer na conversa do Feliciano, chegou a casa. Ao empurrar a porta, ouviu:
- Oh comadre! Oh comadre! Eu prometi à Nossa Senhora, que nos ajudou, e agora esta desgraça; promessa não cumprida é mau sinal.
A comadre concordava, as promessas eram sagradas e para cumprir. E não conseguir levantar o estandarte, e o povo todo a falar…
- Como posso pedir a Deus para nos ajudar?
E chorava.
Já não entrou. Pela frincha da porta viu a cara da mãe. Não era mesma! Onde ele sempre viu alegria, decisão, coragem, certeza, perfeição, via agora desgosto, pranto, descrença, amargura e muita tristeza. E a culpa era dele.
Eram cinco irmãos, ele o mais velho. O pai tinha morrido no inverno passado, e, logo à morte do pai, adoeceu ele. Três meses de cama, despachado do médico. A mãe nunca desistiu à sua cabeceira, era sempre alegria, crença, coragem, decisão. Prometeu, e ele não cumpriu, nem uma pequena parte.
Ficou atordoado com a visão, um turbilhão de coisas passou pela ideia, ficou como que paralisado, não se conseguia mexer, estava adormecido. Começou a subir-lhe pelo corpo acima uma profunda tristeza e uma grande desilusão, nunca se tinha sentido assim. Onde só via alegria e perfeição, agora via miséria e desonra.
Virou costas e começou a andar sem destino, os passos levaram-no para fora do povo. Era já noite, o caminho era só fragas. Subiu para cima de uma espécie de muro, olhou para baixo. Era fundo e as fragas esperavam aguçadas.
A última visão foi o rosto da mãe que viu pela frincha da porta.
Deixou-se cair no vácuo, enquanto uma lágrima lhe molhava o lábio. Ainda sentiu o sabor, era salgada.
- Que desgraça! O homem e agora o filho.
- Onde foi?
- Foi ali para baixo, naquela espécie de muro que tem uma ribanceira por baixo.