<p> </p> <p><strong>O CÚMULO DA FOME</strong></p> <p> </p> <p>Nos dias 15 e 28 de cada mês é a feira de Vila Flor, e é assim há já muitos anos. Num desses anos e num desses dias, ainda o sol não tinha nascido e já andava o Álvaro Samões, terreiro atrás, terreiro à frente, à espera de ver luz na casa do Diamantino.<br /> <br /> O Diamantino tinha uma camioneta e fazia as feiras. Era este o único meio de transporte para lá chegar, e se recuássemos uma meia dúzia de anos, ainda nem estes luxos havia, quem quisesse ir à feira tinha que ir a pé e ainda são uns bons treze quilómetros. Ora nestes tempos já se ia de landó, que é como quem diz, de cu tremido.<br /> <br /> Esta camioneta dava para tudo. A metade de trás da carroçaria era para a cria, umas ovelhas ou algum reco que se fossem vender ou que se tivessem comprado, e servia também para levar ou trazer sacas de batatas ou de adubo, latos, albardas, relhas, enfim, tudo o que em todas as feiras se comprava e vendia. Esta parte ia a céu aberto. A metade da frente era para as pessoas, que se sentavam em dois bancos compridos, um de cada lado e de frente um para o outro e aqui já havia um toldo por cima, que abrigava a gente da chuva e do vento. Os dois lugares da cabine eram para alguém doente ou mais velho, ou na falta destes, para quem se levantasse primeiro e fosse para o Terreiro, às vezes uma ou duas horas antes, a guardar a vez.<br /> <br /> Tantas vezes andou o Álvaro Samões duma ponta à outra do Terreiro, até que viu acender-se a luz na varanda e aparecer o Diamantino, ainda em ceroulas. A partida para a feira era feita sempre de noite. Quem fosse vender alguma coisa tinha que chegar lá cedinho para arranjar lugar, pagar o aluguer ao fiscal da Câmara, armar o trem, ter tudo direitinho para quando chegassem os primeiros fregueses.<br /> <br /> Depois de dar duas tossidelas, uma por baixo e outra por cima, o Diamantino esfrega os olhos e vê então o Álvaro Samões, muito direitinho, mãos nos bolsos e um sorriso malandro no rosto, que era assim que sempre se apresentava nestas situações.<br /> <br /> Ora o Álvaro Samões não tinha mandado guardar lugar e o Diamantino já tinha a lotação preenchida, isto é, os nove lugares que a lei permitia. Admirou-se até de o ver ali, tinha até ouvido dizer que tinha ido trabalhar para fora, já não o via há dias.<br /> <br /> - Di’l’assim, tens um lugar para mim? - Pergunta o Álvaro Samões.<br /> <br /> - Para si há sempre lugar, mas que é que quer ir fazer à feira? – Responde e pergunta o Diamantino.<br /> <br /> Nem sempre o Diamantino cumpria com o limite dos nove lugares. Houve alturas em que iam mais de uma dúzia, nestes casos com ordem para os que iam a mais se esconderem debaixo dos bancos ou doutra coisa qualquer, se a Guarda lhe fizesse alta e fosse fiscalizar a camioneta. Arriscava a multa mas também ganhava mais umas c’roas se a coisa corresse bem.<br /> <br /> O Álvaro Samões vira-se então para cima, para a varanda onde está o Diamantino, e diz naquele ar filosófico que tão bem sabia fazer:<br /> <br /> - Hhhmmm, di’l’assim, estive fora uma semana. Cheguei ontem à noite a casa, abri a porta, acendi a candeia, e di’l’assim, que é que vejo? Um rato morto ali mesmo à entrada da casa. Di’l’assim, infeliz, morreste à fome!<br /> <br /> - Que é que vou fazer à feira? Vou comprar comida pr’àqueles infelizes!…</p>