Benlhevai

...

SERAFIM - Uma Vida


O Serafim nasceu no dia 24 de dezembro, dia de consoada, no hospital de Vila Flor. Nasceu pobre, como quase todas as crianças que nasciam nesses tempos por estas bandas e veio ao mundo são e escorreito, como é costume desejar-se a quem nasce. Mas, ainda de tenra idade, foi violentamente atingido por uma meningite que o viria a marcar para toda a vida. Ficou com graves problemas físicos e psíquicos e temeu-se que não conseguisse sobreviver. A sua mãe, em desespero, foi com ele a Fátima, à procura dum milagre. Naquele tempo não havia estradas, nem carros, nem dormidas em camas macias e com lençóis lavados. A sua mãe levou-o num carrinho de mão rudimentar e como facilmente se pode imaginar, ao colo durante parte da viagem. 300 quilómetros para cada lado! Merecia o milagre! Diz-se que já no Santuário de Fátima o Serafim teria pedido água e como até então não tinha pronunciado uma única palavra, ficou o milagre reduzido a esse facto.

Naquela época era normal a morte dos “anjinhos”, nome dado aos recém-nascidos que não resistiam mais do que alguns dias ou meses. Ora, no caso do Serafim, mais normal seria, tendo em conta as referidas condições em que ficou. Mas os meses foram passando, foi resistindo, até que se entendeu que estava livre de perigo e foi então declarado o seu nascimento no Registo Civil de Vila Flor. Também era normal nesse tempo o dia do nascimento ser diferente daquele que ficava no registo, porque se pagava multa se as crianças não fossem registadas no dia em que nasciam. Então só havia uma solução e quando perguntavam:

- Dia de nascimento?

A resposta era sempre a mesma:

– Hoje!

E assim ninguém pagava multa. Por estas e por outras, no Registo Civil ficou o dia 10 de novembro de 1955 como sendo a data de nascimento do Serafim.

Passaram uns anos, veio a idade de entrar na escola primária e o Serafim não acompanhava o desenvolvimento das crianças da sua idade. Mas ia à escola, brincava no recreio, o Quinteiro Grande, com as outras crianças e continuou a brincar com as crianças que iam entrando na escola todos os anos, que continuavam a ser da sua idade, porque o Serafim era sempre criança.

Outros anos foram passando e acabou por não conseguir aprender a ler nem a escrever. Mas foi crescendo. Não tinha, no entanto, a agilidade dos outros, nunca conseguiu pular a palha, que era um desafio com que o deparávamos não raras vezes. Púnhamos no chão uma palha e incentivávamo-lo a saltar. Ele bem tentava, mas nunca conseguiu transpor a palha, pisava-a sempre. Nós brincávamos com ele e para a maior parte de nós ele era o nosso protegido, ninguém lhe podia fazer mal! Acabou por ficar com mentalidade de criança para a vida toda. Contudo aprendeu a viver em sociedade, a ser educado, responsável e obediente. O Serafim era inteligente, à sua maneira.

Mas voltemos ao início. A sua família tinha vários problemas, e não só em termos económicos, o que motivou a vinda da sua mãe para Benlhevai. Porquê Benlhevai? Por uma razão simples, era aqui que vivia a sua irmã, Preciosa, que lhe podia dar o conforto que já não tinha onde vivia, o Cachão. Foi assim que o Serafim chegou à sua terra adotiva, onde ganhou um lar e uma segunda mãe. A que lhe deu a vida, Berta, viria a morrer pouco tempo depois, em 1959, com apenas 40 anos de idade, vítima de cancro, ainda o Serafim era uma criança. A sua tia Preciosa, que, como quase todas as mulheres de Benlhevai, lutava com dificuldade pela sobrevivência, sua, do seu marido e dos seus filhos, recebeu-o de braços e coração abertos. O Serafim, perdendo a sua mãe, logo ganhou outra que o viria a amparar enquanto viveu.

Os tempos não eram fáceis e mais se complicaram quando em 1972 faleceu o seu tio José, marido da tia Preciosa. O Serafim estava a atingir a maioridade e estava também a necessitar de apoio educativo, médico e psiquiátrico que já não tinha em Benlhevai. Assim, alguns anos depois, após algumas tentativas que não resultaram, foi conseguido finalmente um lugar que lhe podia dar esse apoio. O Serafim rumou então a Bragança, à secção psiquiátrica do respetivo hospital e daí seguiu para a Quinta da Trajinha, onde viria a viver o resto da sua vida, cerca de 40 anos. Essa Quinta tinha terrenos onde eram desenvolvidas atividades agrícolas, que serviam como complemento para as atividades do dia-a-dia dos doentes internados. Como o Serafim tinha capacidades de compreensão e de autonomia superiores aos outros internados, teve sempre tarefas distribuídas, o que lhe dava autoestima e fazia com que não se considerasse um doente, mas sim um colaborador.

- Eu sou do Estado! - dizia ele.

O Serafim conheceu assim um novo lar, onde foi sempre muito bem tratado. Vinha a Benlhevai nas “férias”, onde passava, connosco e na casa da sua tia Preciosa, dias inesquecíveis para ele e para nós. Nesses dias carregava todas as baterias e na despedida, para se consolar a ele e a nós, prometia sempre:

- Para o ano, volto!

Entretanto a sua tia Preciosa foi envelhecendo. A caminho dos 90 anos, foi para França viver com os seus filhos que lá residiam e onde viria a falecer em 2010. O Serafim ficou sem o seu Anjo da Guarda e a casa onde era recebido de braços e coração abertos ficou vazia.

Mas o Serafim não podia ser abandonado. Benlhevai era a sua terra, a sua paixão, não se podiam afastar assim um do outro. Surgiu então outro lar em Benlhevai que lhe deu abrigo, uma casa que ele conhecia bem, onde sempre entrava e saía livremente, como se fosse sua. A senhora Julieta disponibilizou-se para substituir a tia Preciosa, o Serafim podia continuar a vir a passar férias a Benlhevai.

Infelizmente foi sol de pouca dura. A roda da vida não para e nesse movimento inexorável a Sra. Julieta adoeceu e ficou sem condições de o receber. O Serafim perdia outro lar.

Em 2011 tinha surgido em Benlhevai um movimento que pretendia desenvolver algumas atividades, nomeadamente a criação de elos de ligação entre todos os benlhevaienses espalhados pelo mundo. O Serafim estava no topo da agenda, não o podíamos deixar esquecido em Bragança. Arranjou-se quem se responsabilizasse por toda a logística que a sua vinda implicava, quem lhe desse dormida, quem o amparasse durante o dia e lhe garantisse as refeições. Contactaram-se os Serviços onde estava internado, que ficaram também entusiasmados com a ideia e o Serafim podia continuar a vir a Benlhevai de férias!

Foram uns anos felizes para o Serafim, até que no início de 2018 tudo se precipitou. Uma pneumonia atraiçoou-o, atacou-o tão violentamente como a meningite que o tinha agredido em criança, há mais de 60 anos atrás. Perdeu a mobilidade e pior do que isso, a doença afetou-o em termos físicos e neurológicos duma forma que viria a ser irreversível. Em agosto, um grupo de amigos fomos visitá-lo à Quinta da Trajinha e todos regressámos com o coração apertado, com a impressão clara de que muito dificilmente voltaria a Benlhevai. Íamos sabendo notícias dele em contacto com os enfermeiros da Quinta da Trajinha, nomeadamente da enfermeira Paula, a quem sempre agradecíamos, a ela e por seu intermédio a todos os enfermeiros e restante pessoal da Quinta a forma como sempre trataram bem do Serafim. As notícias não eram boas, o seu estado de saúde foi-se agravando e em 14 de janeiro de 2019 recebemos da Doutora Elvira a triste notícia do seu falecimento. Já tivemos também oportunidade de agradecer à doutora Elvira e também através dela ao doutor Machado Rodrigues e a todas e todos os que no Hospital de Bragança, especificamente na secção de psiquiatria, o carinho com que sempre trataram o Serafim. E o Serafim dava a entender isso mesmo sempre que se referia a todas e todos eles.

Em nome de Benlhevai e do Serafim, obrigado a todas e todos.

Restava-nos uma última tarefa, trazê-lo para Benlhevai. Assim foi! O Serafim dorme agora o sono eterno no cemitério de Benlhevai, a terra que tanto amava, a sua paixão.

Adeus amigo Serafim, Benlhevai jamais te esquecerá!

Benlhevai, 12/02/2019

José Maria Sousa Fernandes