Benlhevai

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Capítulo XXII

Ainda EIBAR



Abro os olhos, nem quero acreditar! De repente sinto-me em casa, a acordar na tarimba, o cheiro dos bois a encher o ar da manhã. O som é o dos sinos, anunciam a missa, o encontro com toda a gente, os amigos, os homens, as mulheres, as moças. Sinto o coração pular, é Carolina que eu quero ver entre as moças, mais bonita ainda, aos domingos.

Esfrego os olhos, fixo o tecto e então é a desilusão que me invade. Olho em volta, tudo é estranho, não vejo os bois nem sinto o seu cheiro, esta cama não é a minha. Os sinos tocam novamente, ao longe, o som já é diferente, não é em Benlhevai que estou, mas sim em Espanha, do outro lado, perto de França, já. Dou então conta que nem a cadência é a mesma, embora este toque me atinja a alma, como acontecia em Benlhevai, na minha terra. Estão a tocar à missa, é domingo e a manhã é calma como são todas as manhãs de domingo.

Esta missa não é para nós, somos clandestinos, vamos a caminho de França, da liberdade, à procura dum sonho que nos persegue há muitos dias, há muitos quilómetros. Não podemos ser vistos, a não ser por quem seja cúmplice desta viagem. A senhora das sopas de ovo é uma delas, sabe os segredos da nossa aventura.

Esperamos toda a manhã por ela, e nada. Vamos procurar no saco da merenda por mais alguma coisa que nos mate a fome, ou esperamos simplesmente? É este o tema de todas as conversas e a resposta de cada um também varia conforme o estado em que está o seu saco.

Ao meio da tarde eu e o Carlos resolvemos desobedecer às ordens que o Passador nos tinha dado. O mais sorrateiramente que pudemos saímos de casa e metemo-nos pelo caminho fora à procura dalguma taberna, algum mercado, nem sabemos bem o quê, o que queremos é encontrar alguma coisa que possamos comprar para comer. Temos algum dinheiro, é português mas deve servir para alguma.

Depois de algum tempo, um quarto de hora talvez, vemos uma casa. Batemos à porta, sentimos uns passos aproximarem-se e quem vem abri-la é a senhora das sopas de ovo. É um alívio para nós, já é conhecida. Perguntamos por que é que não tinha ido hoje levar-nos de comer, encolhe os ombros, diz que não tinha tido ordens para isso. Perguntamos-lhe se nos pode arranjar comida, pagando, claro, e mostramos-lhe algum dinheiro. Diz-nos que vai ver o que vale e comprar o que puder com ele. Voltamos então para trás, não há mais nada a fazer.

No dia seguinte, ao meio da manhã, para conforto de todos, lá apareceu a senhora com as sopas de ovo. O mais discretamente que pôde, entregou também ao Carlos um saco. Eram latas de conserva, atum e sardinhas.

Passámos assim mais desafogados os dois dias que se seguiram. Ao meio da manhã chegava a senhora com as sopas de ovo, pela tarde, às escondidas, comíamos conservas, repartidas pelos companheiros de Benlhevai. Ouvíamos falar em negócios de comida e sobretudo de cigarros. Quem os tinha estava a fazer bom dinheiro. A nós parecia-nos imoral, o que tínhamos dividíamo-lo com quem já pouco ou nada tinha. A mim metia-me dó o medo que via nalgumas caras, o desânimo de quem dizia, a chorar, que queria voltar para a sua casa, desistir, fugir desta maldita incerteza.

Era o aconchego da casa que vinha à memória, mesmo que a casa fosse das mais pobres que se possa imaginar, casa modesta onde entrava o calor no pino do Verão e o frio nos dias gelados de Janeiro, o chão de terra batida, um compartimento, no máximo dois para toda a família, uma cama ou nenhuma, na maior parte dos casos um xiragão e uma manta de farrapos para fazer de cobertor quando a geada e a neve ameaçavam entrar por ali adentro. Mesmo assim um lar, o calor do lar feito de afectos.

Veio-me à memória aquela cantiga que os segadores cantavam quando à noite regressavam do trabalho:

O MEU CASEBRE

Vivo além no meu casebre
Onde cheira a rosmaninho,
Onde nasceram meus pais
E os rouxinóis fazem o ninho.

Dizem que no meu casebre
Tudo é feito de pobreza.
Não me importo do que eles dizem,
Para mim tudo é riqueza.

Quando o sol nasce no outeiro
Cheio de ar e de alegria,
Vem ter logo ao meu telhado
Para me dar o bom dia.

Eu não troco o meu casebre
Por um palácio dourado,
Que não cheira a rosmaninho
Nem tem ninhos no telhado

Essa casa agora está longe, é noutra que nos encontramos e não sabemos sequer de quem é.

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