Benlhevai

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Capítulo XV

Espanha - Primeira Paragem

Acordo com fome. O sol entra pelas frinchas das telhas, cai assim aos bocadinhos em cima de nós. Já andam quase todos a pé, falam baixinho uns com os outros em pequenos grupos, alguns espreitam pela porta para o exterior. Estamos aqui presos, não podemos sair para a rua, ordens do Passador. Vou também até à entrada e espreito lá para fora. Este barracão está num patamar, feito num terreno ligeiramente inclinado, já o tinha notado quando aqui chegámos de madrugada. O sol já fez o caminho da subida, chegou ao alto e está-se a preparar para fazer a curva descendente. É meio-dia, o sol não engana. Olho para o relógio, ainda vai nas onze, lembro-me então que entre Portugal e Espanha há uma hora de diferença. O melhor é acertar o relógio.

O terreno não está lavrado, vê-se o restolho, o que quer dizer que este ano deu cereal. Agora fica um ano de pousio e no próximo já vai ser lavrado e sementado. É assim que se faz e aqui deve ser tal e qual como em Benlhevai. Também temos terras como esta que ficaram este ano a descansar. No próximo ano quem vai tratar delas? O meu pai? O Luís? E os bois, ainda vão estar na nossa loje, ou andarão já a lavrar outras terras, com outros donos? Ainda se lembrarão de mim?

Vem aí o Passador e pelos vistos vem também o almoço. Traz um burro à rédea e o vulto nos alforges não pode ser outra coisa que não a comida que havia prometido. Entra com o burro no barracão, quanto menos aparato melhor. Estendemos uma manta no chão, aí são postas duas panelas, uma com batatas e outra com borrego. Os pratos não chegam para todos, comemos dois a dois. Isto para nós não é novidade, já o fazemos desde criança, o prato é partilhado por dois irmãos, neste caso é por dois companheiros de viagem, conhecidos ou não.

Parece a merenda duma segada, até o cheiro da comida é parecido. Um bom almoço nas segadas tem que meter batatas cozidas e canhona estufada. Aqui é borrego, vai dar ao mesmo. Este cheirinho misturado com a fome que já andava às voltas na barriga, transformam uma ementa simples num manjar de reis. Diz-nos o Passador que é um almoço especial. Aqui tem comida que chegue, no resto do caminho já não garante nada, há-de ser outro a tomar conta de nós. Assim sendo o melhor é aproveitar.

Comeu-se tudo, a comida era muita mas as panelas ficaram vazias. No fim ainda se deitaram uns bocados de pão na panela que trazia o borrego, para misturar com aquele molhinho que lá ficou, não se deixou estragar nada. No fim ajudámos a meter a louça nos alforges e o Passador lá se foi, deixando o recado de que nos preparássemos para reiniciar a viagem dali por uma meia hora, mais coisa menos coisa. Íamos a pé, tínhamos pela frente mais uma hora de caminho até uma aldeia onde estaria uma camioneta à nossa espera. Fosse o que fosse essa camioneta, de passageiros ou de carga, sempre seria melhor do que ir a pé. Cada um de nós foi arrumar o respectivo saco, que bem arrumado estava já ele, e passado pouco tempo deixávamos este barracão.

Metemo-nos por caminhos estreitos, subimos e descemos montes, nada de estradas onde pudéssemos ser apanhados pela Guardia Civil. Assim andámos um pouco mais de uma hora, até que começámos a avistar umas casas, era a tal aldeia de que o Passador tinha falado. Esta caminhada demorou mais que o previsto, devia ter sido da barrigada com que ficámos depois do almoço.

Estava tudo bem combinado, assim que entrámos na primeira rua vimos logo uma camioneta. O Passador disse qualquer coisa ao homem que estava sentado na cabina, este mandou-nos subir para a carroçaria e lá entrámos um a um. A camioneta era de carga, a carroceria era toda fechada e já estava quase cheia de cordeiros. À medida que passávamos por eles para nos encostarmos à parte da frente, berravam todos ao mesmo tempo, espantados com a nossa aparição. O caso não era para menos, já vinham assustados por os terem tirado do rebanho, já não tinham teta para mamar, e agora ainda punham esta gente esquisita a passar pelo meio deles.

Quando passou o último do grupo, puseram uma cancela ente nós e os cordeiros e sentámo-nos numas fachas de palha, com ordens para nos metermos debaixo delas se a Guardia Civil se lembrasse de mandar parar a camioneta. O Passador e o outro espanhol ainda ficaram um pouco a conversar, encostados à camioneta, do mesmo lado onde eu me tinha sentado, eles do lado de fora e eu do lado de dentro. As palavras dos espanhóis são parecidas com as nossas, falavam de pesetas,  viagem e borregos. De vez em quando punham-se os dois a falar ao mesmo tempo, e então não pescava nada do que diziam.

A conversa acabou, o motor da camioneta começou a trabalhar e lá arrancámos. Donde estávamos não víamos nada, nem a estrada que ia ficando para trás nem aquela que a camioneta ia vencendo. A estrada não devia ser má, lá íamos dando uns pulos, se calhar por passar por alguns buracos, mas as curvas não deviam ser muitas, só de vez em quando é que sentíamos a camioneta inclinar-se mais para um dos lados. Nessas ocasiões ouviam-se os cordeiros, com o movimento deviam ir uns para cima dos outros e queixava-se, coitados. Mal sabiam eles o destino que os esperava, era a morte, com certeza. O nosso destino era outro, era França, era trabalho, era dinheiro para um dia fazer uma casa, comprar umas terras, arranjar maneira de governar a vida sem ser a trabalhar para os outros. O meu destino era também esse, mas outro também, a liberdade, a rejeição da guerra, uma vida em paz com Carolina.

A camioneta vai agora numa subida, o motor aumenta o esforço e o barulho, a velocidade diminui. Não vejo a paisagem lá fora, encosto a cabeça às tábuas que estão atrás de mim e fico a olhar para lado nenhum. Vão-me passando à frente imagens do que deixei, campos de cereal a pintar de verde campos imensos, os caminhos que tão bem conheço, casas onde vive gente que sempre conheci.

Que andará agora a fazer o meu pai? A dar de comer aos bois, com certeza, com o Farrusco ao lado intrigado por não me ver. E minha mãe, a tratar do reco, das pitas, a remendar umas calças, a trabalhar para a casa, agora já não é para mim, que parti. E os meus irmãos? A esta hora a Isabel está na escola, o Luís anda a aprender a ser homem, é ele que fica no meu lugar. E Carolina? Já não vai à fonte com a mesma alegria, agora só tem a água para levar porque eu já não estou no sítio do costume à sua espera para namorar. Era por esta hora que o coração me levava ao seu encontro, que pulava quando a via, que espalhava paz por todo o corpo se lhe tocava, se as nossas mãos se apertavam, se os lábios se perdiam num beijo fugaz, apressado com medo que alguém nos visse, mas mesmo assim tão intenso, tão cheio de promessas de amor eterno.


Sei que vou à procura do regresso, este caminho há-de levar-me a Benlhevai, só que tenho que passar por França, não sei bem por que estradas nem por quanto tempo, sei no entanto que hei-de chegar triunfante, então já livre, pronto para cumprir este sonho que partilhamos, eu e Carolina, viver todos os dias da nossa vida lado a lado, como se fôssemos um só. É assim que planeamos o nosso futuro.     




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