Benlhevai

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Capítulo XXI

A Passagem



Há umas boas quatro horas que saltamos de pedra em pedra. Por vezes o caminho alarga-se um bocadinho, suspiramos de alívio, mas na curva a seguir deparamo-nos com novas dificuldades, carreirões estreitos, desamparados, o abismo mesmo ali ao nosso lado, a querer meter-nos medo, nós a resistir, enchemos o peito de ar e continuamos como se nada fosse. As pernas não são tão fáceis de domar, por vezes põem-se a tremer descontroladamente, não há quem as sossegue.

Estamos todos molhadinhos dos pés à cabeça, mas já ninguém se importa com isso. O frio que nos entra pelos ossos adentro não vem só da chuva, também vem deste nervoso miudinho que se sente na respiração, que sai da garganta, que se vê nos pequenos gestos de cada um. Estamos sempre à espera que o caminho melhore para lá de cada curva, de cada rochedo, de cada monte. No entanto continua igual, sempre igual, pedras e mais pedras, o abismo ali ao nosso lado a ameaçar-nos em cada momento.

De repente termina o caminho. À nossa frente encontra-se uma ravina de meter medo. Ao fundo vê-se a espuma branca da água a bater nas rochas e sente-se o barulho desse choque. O Passador manda-nos parar. Depois, um a um, descemos por uns degraus que foram talhados na rocha e no fim chegamos a um patamar donde já vemos a tal ponte de que ouvimos falar. É uma ponte de ferro, com os carris do comboio ao meio e um pequeno passadiço em madeira num dos lados. É por esta ponte que temos que passar.

O Passador diz-nos que não custa nada, mas penso que é para nos tranquilizar. Vista daqui, mete medo, quando estivermos em cima dela logo se verá. Agora temos que esperar que passe o comboio, quando isso acontecer é a nossa vez. Temos depois uma hora, mais coisa menos coisa, até ao próximo comboio, de maneira que não há o perigo de virmos todos, nós, o comboio e quem nele vier, por ali abaixo até à ribeira. É melhor nem pensar nisso, vamos mas é procurar abrigo debaixo duma fraga e esperar.

Aproveitamos para nos encorajarmos uns aos outros, fazer de conta que fizemos o caminho com uma perna às costas, e que aquela ponte ali não mete medo a ninguém. Queremos chegar a França, não é? Então toca a andar, para a frente é que é o caminho! Esta pausa dá jeito para descansar um pouco, ver que estamos todos, que ninguém se perdeu. O pior é que a roupa molhada se vai colando ao corpo e o frio mete-se em todos os ossos que encontra pela frente. É por isso que todos ficamos aliviados quando começamos a ouvir ao longe o barulho do comboio. Não engana, é igualzinho ao do comboio do Cachão.

Assim que se perdeu o comboio na paisagem, fomo-nos reunindo novamente e lá continuámos a marcha, agora em fila indiana. A missão era enfrentar a ponte, passo firme e nada de olhar para baixo. Só podíamos olhar em frente, manter sempre a mesma distância para o companheiro da frente, nem mais, nem menos. Percebeu-se bem quando o primeiro do grupo lhe pôs os pés em cima. Houve uma hesitação que se estendeu por todos nós. Parece que todos entrámos na ponte ao mesmo tempo. Durou pouco, logo de seguida a fila foi pisando a madeira da ponte, se alguém teve medo não o deu a entender. Foi o que eu fiz, a seguir ao calafrio que senti quando senti a madeira debaixo dos pés, parece que deixei de sentir o corpo. Ainda fui inundado por uma onda de calor, bateu-me na cara, passou-me para o peito e desapareceu. Deixou-me quase sem vista, só via o vulto do companheiro que ia à minha frente. Ainda senti uma espécie de grito contido de alguém que ia lá para a frente, mas não foi mais do que isso, depois só ouvia a minha própria respiração, cadenciada, a princípio forte, pouco a pouco mais calma. Veio-me à memória um jogo de roda, rapazes e raparigas em duas filas paralelas, um duma fila a agarrar nas mãos do que estava à sua frente na outra fila, fazendo um túnel. Os últimos da fila iam avançando por esse túnel, ao som duma canção:

- Bom barqueiro, bom barqueiro, deixai-nos passar,

- Tenho filhos pequeninos para acabar de criar!

- Passarás, passarás, mas algum há-de ficar,

- Se não for a mãe de diante, há-de ser o filho de trás!

Ao cantar do último verso, o último ia saindo da roda.

Tive vontade de olhar para trás para confirmar que o último não tinha saído da roda. Esta roda não era de brincar, aqui se alguém saísse seria para sempre. Este jogo era a doer!

Não sei em que é que os meus companheiros pensavam nesta altura. Não os ouvia e não os via, a não ser o vulto do que ia à minha frente. Se calhar pensavam no perigo que corríamos, noutro jogo qualquer, ou simplesmente em nada. Por vezes é o melhor, não pensar em nada, andar apenas, avançar, avançar, avançar até pisar terra firme.

Terra firme! Que alívio aquela pisadela numa pedra, sentir novamente os pés a doer, agora mais ainda com a humidade que entrou, ou talvez do suor que nasceu do perigo, do medo, sei lá. Por respeito não olhei para trás. Todos fizemos isso e nem tinha sido combinado. Todos os que já tinham chegado à outra margem estavam virados para a frente, ninguém quis perturbar o passo dos que ainda estavam na ponte. Só quando o último a passou e deu sinal é que nos virámos uns para os outros, alguns não contiveram um abraço, uma palmada nas costas de alguém, como quem dá os parabéns por algo que se tinha conquistado.

Senti soluços atrás de mim, alguém chorava.

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