Benlhevai

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Capítulo XVIII

Benlhevai, 1957

Em julho, aqui por Benlhevai, vão acabando as segadas. Pelos campos fora, os rilheiros, que são nem mais nem menos que pequenas medas, ou seja, um monte de molhos de centeio ou trigo, devidamente dispostos para que não se molhem se vier alguma trovoada, que por estas alturas costumam ser das valentes, vão acabando de secar, à espera da acarreja, para levar o cereal para a eira.

Nas zonas mais húmidas, onde a terra tem mais cessão, em que o cereal ainda não está suficientemente seco, põem-se ainda os molhos ao alto, espigas para cima, encostados uns aos outros, de maneira que apanhem ainda alguns dias de sol para acabarem de secar. Estes grupos de molhos chamam-se parvas, e deixavam sempre os lavradores com o coração nas mãos. É que se vinha alguma trovoada estes molhos ficavam sem grão, lá se iam dias e dias de trabalho pela terra fora. Muitas vezes foi preciso ir a correr e pô-los em rilheiros, às vezes já com aquelas pingas grossas de água a cair nas costas. Outras vezes já estava tudo espalhado pelo chão, dias e dias de trabalho desfeitos ali num instante, tinha-se chegado tarde demais.

Este trabalho da acarreja começa cedo. Ainda antes do sol nascer, toca a saltar da tarimba, junguir os bois e pô-los ao carro. A esta hora da noite ainda não andam por ali moscas e moscardos, para alívio de todos, principalmente dos bois. Lá mais para o meio da manhã há de ser bem pior. O rabo do boi não para de as enxotar, e então os moscardos, bem maiores, agarrados às matas dos bois, a sugar-lhes o sangue, até dói. Não adianta enxotá-los, voltam-se logo a agarrar. Lá se vai matando um de vez em quando, mas aparecem logo mais meia dúzia. O remédio é só um, terminar o trabalho e pôr os bois na frescura da loje.

O carro está à espera, pinalho, pombela e varas, isto é, uma trave de olmo que mais ou menos a dois metros duma extremidade (esta parte fica a constituir o pinalho), se abre ao meio, e estas duas partes vão-se afastando uma da outra, até ficarem a cerca de metro e meio uma da outra (esta parte que vai alargando é a pombela), continuando depois em paralelo mais uns dois metros (as varas).

A meio da pombela já leva dois estadulhos, que além de servirem para acomodar as cargas, servem também para o lavrador se sentar entre eles. Pernas metidas no espaço que a pombela já tem livre, até dá para aí passar pelas brasas quando o corpo o pede. Entre as duas varas fica o chão do carro, feito de tábuas. As duas varas são perfuradas, para aí serem encaixados ao alto quatro estadulhos de cada lado (paus com cerca de dois metros). É esta a proteção lateral das cargas para os molhos do cereal, e para que seja melhor, os estadulhos estão ligados entre si na horizontal, com tábuas estreitas e fortes, ou põem-se as enderenças, que não são mais que estadulhos ligeiramente tortos, com uma argola de ferro em cada ponta, que seguram na perpendicular os estadulhos, encaixando as argolas em cada um deles que está na extremidade, e passam pelo exterior dos dois do meio. Se for outra a carga, por exemplo o estrume, em vez dos estadulhos põem-se os taipais, que é como se fossem quatro estadulhos, mas ligados entre si por tábuas, para a carga não cair.

A meio de cada vara, abrem-se mais dois orifícios, onde são introduzidos dois paus (com meio metro de comprimento) que atravessarão as varas para a parte inferior, e que hão de abraçar o eixo, que com o tempo, na parte de fricção, estará bem limado. Estes paus são as treitouras. Para apertar mais ou menos as treitouras ao eixo, mete-se uma cunha, a apeladoura. Falta falar no chabilhão, peça em madeira que será introduzida no buraco que está na extremidade do pinalho, e que será, na parte inferior, a parte onde os bois vão aplicar toda a sua força para o puxar. É aqui que o tamoeiro vem agarrar o carro, sendo que este tamoeiro é uma corda de cabedal, forte, que está presa nas extremidades dos castelos do jugo, a parte dentada deste que está a meia distância entre o meio e cada um dos bois. O jugo assenta por cima das meleias, também em cabedal, em forma de U, que são metidas por cima do pescoço dos bois, e que servem de almofada. Estes estão ainda protegidos pelas sogas, também estas em cabedal, uma espécie de boné, a parte da frente com franjas que caem para a cara do bicho, e lateralmente, duas destas franjas vão ser atadas a cada um dos cornos do boi. No jugo fica também a cantelra, um ferro pequeno em U, as duas extremidades pregadas no jugo, com as dimensões certas para aí entrar a parte cortante da machada, e aí ficar suspensa, sem cair. O cabo da machada fica virado para o lado esquerdo do jugo, a não ser que o lavrador seja canhoto, e então fica virado para o outro lado. E porquê estes preciosismos? A machada é um objeto indispensável no carro, para fazer uma treitoura se a do carro se parte, uma apeladoura, um chabilhão, e também para cortar o tamoeiro ou cordas em caso de acidente, se o carro se vira. É por isso que tem que estar do lado esquerdo do jugo, do lado da mão direita do lavrador quando vai à frente dos bois. A cantelra é assim uma peça pequena do carro, mas com uma grande importância, principalmente em caso de acidente, que por vezes acontecia, numa ladeira, num caminho mais em desvão, ao arrouçar o carro num crueiro, ou num sítio mais inclinado.

Passo lento, ou melhor, nem lento nem rápido, que os bois só têm um passo, o passo de boi, lá se vai, à luz do luar, percorrer por vezes longos caminhos até chegar ao destino. Carrega-se o carro, um a abondar, outro em cima do carro a fazer a carga, e não pode ser qualquer um, porque a carga tem que ser grande e bem arranjada. Depois faz-se o caminho de regresso, carro carregado com trinta a quarenta pousadas, e bem sabemos que cinco molhos fazem uma pousada. Ao entrar no povo dá-se ordem para os bois pararem, por vezes com a ajuda da aguilhada. Um toquezinho no pescoço, o boi vai de cabeça levantada, assim é que é, dá-se uma apertadela às apeladouras, e assim o carro chia e chama a atenção de quem está por perto, que a carga está bem feita, e uma carga bem feita tem que ser vista. Chegados à eira, descarregam-se os molhos na mêda, também com ciência, que era vergonha que não ficasse bem feita, em redondo ou quadrado, mas perfeito, subindo e apertando o diâmetro até terminar com um molho mesmo no cimo do eixo central. Há uma história de alguém a quem se esborralhou a meda. Já ninguém se lembra do acontecido e muito menos do nome de quem a fez, apenas se consta que era alguém que fazia tudo tarde e mal e o que fazia era à trocha mocha. Andava sempre na retangueira, teve que fazer a meda à pressa, e depois deu no que deu. Esta história há de perdurar até que já ninguém saiba sequer o que é uma mêda. É portanto um assunto sério, isto de pôr centenas de molhos uns em cima dos outros.

Meia volta, e pés ao caminho para fazer nova carga. Antes do calor do meio-dia ainda se hão de fazer mais duas carradas. À tarde é que só se faz uma, por causa das moscas e moscardos, e porque se faz a sesta para descanso da gente e dos bois. Para quem se levantou à uma da manhã, fez a primeira carga e descarregou-a na eira ainda de noite, e ainda fez mais duas antes do meio-dia, é bem precisa uma boa soneca, e os bois um bom descanso e um valente fardo de feno.

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