Benlhevai

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Capítulo XVII

Uma Noite no Curral das Vacas


Acordo com o barulho dos cordeiros. A camioneta parou, estão a descarregá-los e já sabemos que é aqui que vamos ficar esta noite. Esta viagem terminou, é tempo de descansar, pois amanhã vamos ter uma jornada difícil pela frente. É o que nos explica o Passador que também nos diz que é ele que nos vai acompanhar até à fronteira com a França. Ainda estamos longe dessa fronteira, mas esta notícia já nos faz pensar na França, no fim destas viagens, no trabalho, no dinheiro, na liberdade.

Ainda é cedo para esses pensamentos, ainda falta muito para lá chegar e pelo que diz o Passador estamos a atravessar a parte da Espanha onde a viagem é mais perigosa e onde é maior o risco de sermos apanhados. Esta noite vamos ter que dormir num curral, bem escondidos, aqui nas redondezas desta terra onde agora chegámos. Amanhã vamos fazer uma viagem de carreira durante a manhã e à tarde vamos passar por uns montes que metem medo a qualquer um, e essa viagem tem que ser feita a pé.

- Quando é que chegamos a essa fronteira com a França? – Pergunta um do grupo de Bragança.

- No lo sé. – É a resposta seca do Passador. Estes espanhóis não são nada simpáticos.

Somos então guiados por uma rua escura. Mal se vê o caminho, o da frente vê o Passador e cada um dos outros só tem que ver o que vai à sua frente. Deixamos as casas para trás e uns quinhentos metros à frente aparece o vulto desse curral. Entramos por uma porta, é aqui que vamos dormir.

Só ao parar é que vi que estava rodeado pelos restantes elementos de Benlhevai. Não sei se foi por acaso, parece-me que não fizemos nada para que isso acontecesse, ou se foi uma forma instintiva de nos protegermos do perigo. Estávamos já muito longe de Portugal, íamos para onde nos mandavam, andávamos completamente perdidos, guiados por um estranho a quem tínhamos que obedecer cegamente e em quem não confiávamos lá grande coisa. Foi isso que nos juntou, não há dúvida.

O Luís “Pedreiro” agarrou-me o braço esquerdo com força, senti que era protecção que procurava. O Chico “d’Eirinha” e o Manuel “da Rosa” iam também apoiados no Carlos. Homens feitos, pais de filhos, com muitas histórias passadas, repletas de valentia em que o medo não tinha lugar, parecia agora que era na nossa juventude que depositavam toda a esperança para vencer a noite, o desconhecido, a escuridão.

Senti-me bem com o que me pareceu ser uma demonstração de confiança. Respirei fundo, assumi o papel de protector, com a mão direita agarrei também o braço do Luís “Pedreiro”, como quem diz: - Estou aqui para o que der e vier, pode contar comigo!

 Depois duns metros percorridos dentro do curral, que bem se via ser de vacas, que o cheiro não enganava, fomo-nos sentando, imitando o que os da frente faziam. O chão era de terra fria, não havia sequer umas palhas a proteger-nos. O remédio era encostarmo-nos uns aos outros e assim tentar resistir melhor ao frio, que o corpo pedia descanso e umas horas de sono.

Depois dumas palavras de conforto, iguais às que sempre trocávamos quando a situação nos parecia mais difícil, começámos a procurar o sono, tentando esquecer o desconforto do chão que nos servia de cama. Antes de dormir, à medida que os olhos se iam fechando, iam passando por eles as imagens que à noite sempre me vinham visitar – da minha mãe, do meu pai, dos meus irmãos e de Carolina. Era esta que me levava para o mundo dos sonhos, era o seu sorriso que me pousava nos lábios, as lágrimas com que a deixei que me humedeciam os olhos. Lentamente iam perdendo a nitidez, até que adormeci, no aconchego desta nova família que tinha à minha volta, companheiros de viagem, camaradas de aventura.

Passado algum tempo, não me pareceu muito, acordei com o frio húmido da terra onde estava sentado. Não sei se o mesmo aconteceu a mais algum, se calhar havia mais gente que tinha acordado com o frio e com esta humidade que ia subindo pelos ossos acima, mas o silêncio era total, descontando umas ressonadelas que ajudavam a calcular o espaço que ocupávamos. Estávamos em fila, encostados a uma pequena parede que nos separava das vacas. Aquela humidade, era bom de ver donde vinha, pela proximidade e pelo cheiro. Não haveria melhor sítio para passar a noite? Se calhar não, bem sabia que íamos clandestinos e que os caminhos que percorríamos e os locais onde descansávamos teriam de ser o mais discretos possível. Não havia remédio, toca a dormir novamente.

Acordei antes de vir o Passador. Fui acompanhando a entrada da luz do dia e confirmando a presença das vacas e do produto das suas necessidades. O cheiro parece que ia aumentando à medida que a noite se despedia, misturava-se agora com aquela neblina que parece emergir da terra e que se tornava neste caso mais espessa ao sair dos montes de estrume que havia no canto do curral. Foi com alívio que vi entrar o Passador, acordar os mais atrasados no sono, e sair dali à procura do ar puro que me lavasse. Fazia um frio de rachar e deixei-o entrar pelo corpo adentro, na esperança que funcionasse como desinfectante

Já fora do curral, enquanto comíamos um bocado de pão com o leite morno que nos foi fornecido, ouvimos as instruções do Passador. - “Íamos entrar numa camioneta onde já estavam alguns espanhóis. Devíamos fazer o que eles fizessem, fazer que cantávamos quando eles cantassem, fazer que rezávamos quando eles rezassem, bico calado quando eles se calassem. Nada de mostrar que éramos portugueses, se a Guardia Civil se cruzasse connosco tinha que ver uma carreira cheia de espanhóis, que se dirigiam para alguma romaria”.

Assim foi. Passado algum tempo surgiu a carreira, parou ali à nossa frente, e ao entrar vimos uns quinze ou vinte espanhóis que nos receberam com uma saudação discreta, um levantar de mão. Estavam dispersos por todos os bancos, pelo que ficámos misturados com eles. Era esse o objectivo, era essa a melhor maneira de parecermos todos espanhóis.

Uns quilómetros à frente, entrámos na estrada nacional, onde uma placa anunciava que estávamos na zona de Palência. Metade de Espanha já tinha ficado para trás.

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