Benlhevai

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Capítulo XIV

Entrada em Espanha

Espanha! Entrámos em Espanha! Olho para trás, para Portugal, sinto uma mistura de arrependimento e alívio:
- Da Pide já nos livrámos! O primeiro grande obstáculo está vencido!

Nunca tinha saído de Portugal. A viagem maior que tinha feito foi a Chacim, faz por esta altura dois anos, fui lá à feira com o meu pai. De resto as minhas saídas eram a Vila Flor, à festa da Senhora da Assunção uma vez por ano e nalguns domingos às terras vizinhas a jogar à bola. Já conhecia a sensação de deixar Benlhevai, aquele aperto no peito quando saía dos seus limites, mas nada que se compare com esta de deixar Portugal para trás. Com a sensação de alívio veio novamente aquele sentimento de estar a fugir da minha terra, de a deixar indefesa.

O perigo de sermos apanhados pela Pide era bem real. Ainda não há muito tempo tinha havido a notícia do grupo que foi apanhado entre Chaves e a fronteira. O carro onde iam foi mandado parar, foram todos revistados, o carro também, e é claro que os da Pide viram logo do que se tratava, era gente que ia fugir para o estrangeiro. Os sacos que iam na mala levavam todos mais ou menos a mesma coisa, uma muda de roupa, um ou dois salpicões, figos secos, um queijo e uns maços de cigarros. Não adiantava negar, iam para França, à procura de trabalho e dum futuro melhor. A princípio ainda tentavam dizer que iam só ali a uma feira, mas acabavam por confessar, à custa de porrada da grossa, que essa gente da Pide não era para brincadeiras. O motorista do carro, esse andava a ganhar a vida dele, podia alegar que não sabia o destino dos passageiros do carro, às vezes livrava-se da porrada, outras não.

Nós tínhamos tido sorte, ninguém nos tinha mandado parar até à fronteira. Agora, em Espanha, o perigo é o mesmo. O Salazar está em Portugal e o Franco em Espanha, mas parece que andaram na mesma escola. Querem tudo debaixo da pata e muito respeitinho, o que quer dizer que não se pode pôr em causa seja o que for. O destino dos pobres é trabalhar de sol a sol, rapar fome de cão e obedecer a todas as ordens que lhes forem dadas. Se alguém pergunta porquê é logo acusado de ser comunista e o destino mais certo é ir parar à cadeia, levar porrada de meia-noite e em muitos casos desaparecer sem se saber para onde.

O Passador espanhol avisa-nos logo que não quer barulho, só fazemos o que ele manda e se alguém ficar para trás ninguém vai saber dele. Agora as ordens são para seguir em frente, vamos aproveitar a noite para avançar para fora desta zona da raia, onde a Guardia Civil mantém vigilância mais apertada. Toca a andar!

Mergulhamos assim na noite, no desconhecido, por terras de Espanha. O Passador português terminou o seu trabalho, deu meia volta e regressou à sua terra. Aí vai arranjar outro grupo e trazê-lo até onde nos trouxe a nós, à fronteira com Espanha. Nestas viagens hão-de vir centenas de homens e mulheres, mais homens que mulheres, com os anos vão ser milhares, dezenas de milhar, centenas de milhar, é um povo inteiro que emigra, que foge da fome, da guerra, da opressão dum ditador e dum regime que esmagam Portugal.

A noite parece agora mais negra, mais fria. Os caminhos são estreitos, vamos sempre em fila indiana, em silêncio, de acordo com as ordens do Passador.

Aquela passagem pelo rio, alguma humidade que entrou pelos pés acima e o passar da noite, tornam o ar mais frio. Vou aqui com um estranho à frente e outro atrás, os meus companheiros de Benlhevai vão na frente do grupo, foi assim que o Passador espanhol nos pôs na fila. A noite está a chegar ao fim, começam a ver-se no céu sinais do dia que aí vem, este dia espanhol, cansativo, silencioso, triste. Devem ser umas quatro da manhã, não apetece olhar para o relógio nem isso interessa. O tempo deixou de ter importância, o importante agora é andar, andar, fugir da zona da raia, sem saber para onde.

Subimos montes, descemos caminhos sinuosos. Os pés doem e a humidade aumenta essa dor. Quem me dera na tarimba, a dormir na paz de Benlhevai… Imagino-me no calor dos cobertores, os pés quentinhos, o cheiro dos bois, da palha, dos restos de feno que estão nas extremidades da manjedoura. Que cheiro tão doce me envolve, que paz me embala, que felicidade me leva para o país dos sonhos…

Quase bato no companheiro da frente depois de tropeçar numa pedra que não deveria estar ali, no meio do caminho. Ponho-me direito outra vez, tento disfarçar para não dar a entender que me tinha deixado dormir. Segue a caminhada, agora mais lenta, estamos todos a cair de cansaço. Os mais novos ainda vamos resistindo, mas há gente com mais alguns anos, mete dó ver o esforço com que tentam esconder as fraquezas da idade. A claridade vai aumentando, não tarda nada e vem aí o sol, vai aparecer por entre umas nuvens que se vêem no céu.

Acabamos de sair dum caminho metido entre muros altos de ambos os lados. Ao sair deste caminho entramos numa subida que nos vai levar a um barracão. Já é dia, já se vê na frente do grupo o Passador a sair do caminho em direcção a esse barracão. Finalmente, o descanso.

No interior do barracão vêem-se objectos da agricultura, iguaizinhos aos de Benlhevai, dois carros de bois, alguns jugos, várias charruas, grades, sachos, forcadas, engaços, outros objectos mais pequenos pendurados nas paredes, meleias, focinheiras, gadanhas, seitouras, martelos, vê-se que é uma casa de lavoura das fortes. Ao fundo há muita palha e uns xiragões no chão. É para lá que nos dirigimos, dois para cada xiragão, toca a descansar!

O Passador dá-nos as últimas instruções antes de sair:

  “Ahora, dormir. Más tarde, comida, entiendes?”

Se não entendêssemos era o mesmo. Caímos todos nos xiragões, só houve tempo para tirar os sapatos, aliviar os pés do suplício que estavam a passar há horas. Sentei-me, pus-me a passar as mãos pelas partes mais doridas dos pés, a tentar aliviar a dor. Olhei para o Carlos, perguntei-lhe como tinha sido a viagem dele, primeiro até Quintanilha, depois na passagem do rio, na fronteira, o resto da caminhada. Tinha sido mais ou menos como a minha, pois claro. Tentámos fazer de valentes, éramos novos e tínhamos que o dar a entender, dar ânimo aos companheiros de mais idade, mas estes estavam já todos deitados, alguns já ressonavam, outros olhavam para cima, para lado nenhum, tentando pensar na mulher e nos filhos que tinham deixado em casa, ou então a tentar fugir desses pensamentos, sabe-se lá.

Deito-me, o Carlos também, o Chico “da Eirinha”, o Luís “Pedreiro” e o Manuel “da Rosa”, companheiros de Benlhevai, estão já a dormir. Está tudo em ordem, na paz do Senhor. Tento não pensar em coisa alguma, quero descansar, dormir, acordar mais logo com as forças retemperadas. A palha do xiragão não está muito moída, sinto-a estalar quando lhe caio em cima. Logo de seguida é o cansaço que se mostra, espalha-se por todo o corpo; Nas costas lembra-me o peso do saco, nas pernas os quilómetros percorridos, nos olhos uma noite sem dormir. Desce até aos pés, mistura-se com a dor e é assim que me deixa, embalado pelo calor que vem da palha e dos cobertores. Já todos dormem, agora é a minha vez.   




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