Benlhevai

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Capítulo XIX

Terminada a acarreja, há que arranjar pessoal para a malhada. Homens para malhar não faltam, mas homens que saibam malhar não há tantos como isso, e é tudo a mim a mim. A estes não lhes falta trabalho. Primeiro limpa-se a eira, que normalmente é na rocha, mas se há fendas entre as lajes de pedra, têm que ser bem limpas, porque a seguir esses buracos vão ser bem tapados com bosta de boi. Depois, com alguma solenidade, porque daí em diante não se vai tolerar qualquer tipo de barulho, perfilam-se três homens de cada lado.

Cada malhador traz a sua forcada, de madeira para não ferir o chão da eira, e o seu malho, peça dividida em três partes – a mangueira, o içadouro e o pírtigo. A mangueira é um pau com cerca de 2 m de comprimento. Tem na ponta uma argola em ferro, onde é preso o içadouro, peça em couro que também vai ficar presa a outro pau, o pírtigo, este mais pequeno, que é o que vai cair na horizontal em cima do molho do cereal, para separar o grão da palha. As mulheres põem os molhos de pão entre os dois grupos, com gestos precisos, para não colidirem com os gestos dos malhadores.

Um dos grupos avança, e em perfeita sintonia, ergue a mangueira e com um gesto da mais apurada técnica faz com que o pírtigo suba, faça lá no alto um movimento que é um autêntico passo de dança, e desça velozmente, caindo na horizontal em cima do cereal que as mulheres tinham espalhado no chão. Estão os malhos dum grupo a descer e os do outro a subir. O movimento é cadenciado, pum, pum, e é este som que faz de batuta, como se algum maestro estivesse a marcar o ritmo. Eis a razão por que não pode haver qualquer som estranho a intrometer-se.

Por um destes anos chega a malhadeira. Uma revolução! Coisa nunca vista! Faz o trabalho de seis ou oito homens! Mete-se o cereal dum lado, sai o grão por outro e a palha e a moinha por outro, que também ficam separadas, uma vez que a palha vai mais para a frente, e a moinha fica logo ali à saída do buraco. Trabalha a motor, o encarregado da malhadeira agarra na manivela, começa a fazer andar a roda do motor, primeiro lentamente para pôr toda a engrenagem a funcionar, esta roda e através desta as correias e rodas da malhadeira, alguns homens ajudam logo neste esforço, puxando a correia grande, a que liga o motor à malhadeira, depois sincroniza o seu esforço com esse movimento, vai aumentando o ritmo até que o motor começa a dar sinais de vida. Pum, mais uma volta, pum, pum, está quase, outra volta ainda com mais vigor, e então começa a haver uma continuidade. Primeiro hesitante, pum, pum, uma em seco, pum pum, outra em seco, e finalmente, pum pum pum pum, e trabalha a sério. As correias que vão do motor para a malhadeira começam a andar a alta velocidade, na malhadeira umas rodas começam a fazer andar as outras, uma correria, uns gritos de “vamos embora, vamos embora!”, e cada um ao seu posto, que cada qual sabe bem a missão que lhe cabe. De repente estão todos prontos para iniciar o trabalho.

O Joaquim no seu pedestal, óculos de proteção, um lenço no pescoço, uma palha na boca, a meter o molho que alguém lhe abondava, já sem o bancelho, bem aberto na boca da malhadeira. Esta engolia-o com rapidez, tinha que se meter outro, mas a um ritmo certo, senão acontecia como o António Nestor dizia, no seu jeito de falar em que nunca acabava as frases:

“Se metem muito, vai ele p’ró...”, e queria ele dizer que ia tudo para o palheiro, o grão misturado com a palha;

“Se metem pouco, vão elas p’rá…”, neste caso iam as mulheres para a sombra, que o trabalho era pouco.

Do outro lado saía a palha e a moinha. Esta ia sendo retirada para um lado, a palha era retirada para outro, por duas mulheres cada uma com a sua forcada, e levada para junto do palheiro. Aqui estavam mais duas mulheres, também com forcadas, que de costas para o palheiro, em conjunto espetavam as forcadas num grande montão de palha, levantavam-no por cima das suas cabeças, e punham-no assim em cima do palheiro, que como se disse estava nas suas costas. Em cima do palheiro estava um homem, mestre em fazer palheiros, a distribuir a palha de maneira que fosse subindo em forma cilíndrica, e na altitude certa começar a ser formado um cone, até se fechar. Podia chover a cântaros, que a palha não se molhava. A camada exterior era uma proteção perfeitamente impermeável.

O grão saía limpinho num tubo que estava num dos lados da malhadeira. Aqui estavam dois homens, um a agarrar a saca, a tirá-la quando estava cheia, e a meter outra vazia. O outro a levar a saca quando cheia, a apertá-la, e a arrumá-la no sítio próprio para depois ser carregada no carro. O dono da malhada andava por ali a ver, a dar ordens, a ajudar numa aflição se fosse necessário. O dono da malhadeira estava mais recatado, de guarda-sol, a fazer contas à maquia e a vigiar a produção, não fosse alguém querer passar algum grão pela porta do cavalo. A garotada andava aos pulos e aos gritos, na brincadeira, a esbarar pelos montões de palha, a estrobar quem trabalhava, indo de vez em quando ao cântaro ou à pechorra beber água. Tirava-se a rolha, uma proteção de cortiça, metia-se o púcaro, e que bem sabia aquela água, meio morna, às vezes quente, que o calor era intenso, e com um sabor a palha fresca, que só se saboreava naquela época do ano.

Era um trabalho duro. Tinha que ser feito com a palha bem seca, portanto sempre ao estorriqueiro do sol. Mas era um dia de festa! Era o culminar dum ano de trabalho. É certo que pouco centeio e menos trigo ficava, depois da maquia da malhadeira e do pagamento das rendas, escandalosamente altas, que se pagavam pelas terras. Em anos ruins podia não ficar nada, como certo ano aconteceu ao Zé Hipólito.

O dono da malhadeira e os arrendatários, desconfiados, fizeram marcação cerrada na malhadeira. À medida que a malhada avançava mais se acentuavam as dúvidas se a colheita daria para a despesa. Cada um deles não queria ser o último a tirar a sua parte, até que o Zé Hipólito, já empachado, vendo que iria para outras mãos o fruto de um ano duro de trabalho, virou costas e foi-se embora, dizendo simplesmente, mas com raiva “Fiquem com tudo!” Mas isto eram exceções, porque normalmente ainda ficava alguma coisa. Então ia-se para casa do dono da malhada, os homens tinham de prenda um cigarro cada um, as mulheres um rebuçado, e toca a comer e a beber, a cantar e a dançar. Desde a decrua até à malhada era um ano de trabalho duro, e agora que chegava ao fim, merecia uma festa a condizer!

Termina julho, entra agosto (a gosto, para os mais malandros que dizem que o dia 31 de julho é o melhor dia para casar). E esta até será uma boa maneira de começar a falar no mês de agosto, mês de festas, mês do Cabeço, a festa de Nossa Senhora da Assunção. Toda a gente vai ao Cabeço. A pé são uns bons dez quilómetros, é uma boa estonada, mas em grupos, com aquela alegria de quem diz que “vai para a festa!”, nem parecem cinco.

Ao chegar, começa a entrar no nariz aquela mistura emocionante de cheiros – pó, melão, que também vem das cascas que estão por todo o lado, fora do caminho, bem entendido, e folha de eucalipto. À hora da merenda vão misturar-se ainda os cheiros do salpicão, queijo duro (e que cheiro intenso ele tem), e de suor, que o calor cai a pique a essa hora. Compra-se água, que os beiços estão ressequidos e um dia não são dias, apregoada alto e bom som “auga e bilha a quinze testões!”, ou então vai-se para a confusão, a meio da subida, onde um mordomo da festa que se move dentro dum círculo rodeado por grades, vai enchendo uma romeia de água, presa por um cadeado, e distribuindo-a à multidão sedenta. É uma confusão dos diabos.

É bem melhor retirar os quinze tostões ao orçamento, embora apertado, que se conseguiu para a festa, às vezes com a venda do cornelho, que é um fungo, de cor escura, que se desenvolve no centeio, e que se vendia ao peleiro.

Lá para a noite, no cantinho que por tradição junta as gentes de Benlhevai, porque outros cantinhos há que são ocupados pela gente de outras aldeias, faz-se o baile. A música é bem diferente da do realejo. Aqui há conjuntos, como os Melros que tocam músicas às quais não é possível resistir. Dança-se até às tantas, os garotos estão já por ali amouchados a um canto, a dormir. Interrompe-se apenas para ver a descarga da meia noite. O fogo de artifício enche o céu. Morteiros, que até fazem estremecer a terra e o coração, foguetes de lágrimas, lindos, de todas as cores. Os garotos acordam, os olhos arregalam-se de prazer, brilham de alegria. Demora tanto, a descarga da meia noite, que ao regressar ao baile até dói o pescoço.

A ida para a festa foi alegre. Agora é que são elas. Quando às cinco ou seis da manhã se disser com aquele ar triste e cansado, que “vem da festa”, então os dez quilómetros parecem vinte. Os homens trazem no chapéu, presa à fita que o rodeia, a imagem, em papel, de Nossa Senhora da Assunção, as mulheres um saquinho de amêndoas, aqueles rebuçados com um grão de amêndoa dentro, e uns versos duma qualquer desgraça que teria acontecido algures numa região longínqua do país, como aquela:

Numa aldeia alentejana, que horror

Uma mãe matou três filhos duma vez …”

Quando se chega finalmente a Benlhevai, vê-se que tudo está em ordem. Dissemos que toda a gente vai ao Cabeço, mas não. O Alfredo, que é cego, tem nesse dia o seu dia de glória, porque é ele quem fica a guardar o povo. Alguém lhe dá essa incumbência, a fingir que é a sério, mas ele assume com toda a coragem essa tarefa, tendo a perfeita consciência da responsabilidade de tal missão. Vai tudo ao grejo, e é ele que fica a guardar o povo, há de ficar bem guardado.

Tem muitas histórias, o Alfredo. Em novo fazia o que podia. Não seria muito, que ele já era um chinchelras, mas o que fazia era de boamente. Havemos de contar as suas histórias lá mais para diante. Agora ficamos com uma das suas canções favoritas:

Atirei com bolas de ouro

À janela do Morgado.

Eu matei a Morgadinha

Agora vou degradado.


Agora vou degradado,

Agora vou pr’á cadeia.

Minha mãe venha-me ver,

Venha fazendo na meia.

Venha fazendo na meia,

Venha fazendo meote.

Eu matei a Morgadinha,

Triste foi a minha sorte!”

Agosto também é o único mês do ano em que há alguma folga nos trabalhos agrícolas. O centeio está na tulha, as batatas já foram arrancadas, as cebolas também. Há apenas os feijões na horta que é preciso regar, os bois para tratar, enfim, nada demais. Há assim mais tempo para o namorico, para estar na taberna, para aos domingos jogar à bola com as equipas das terras vizinhas.


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