Benlhevai

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Capítulo IV

Zé Manuel

Carolina arranjava sempre maneira de ir à fonte à hora combinada, inventava mil desculpas, por vezes ia às escondidas despejar a água do cântaro no quinteiro, se ainda tinha alguma, e lá ia com o coração aos pulos até o ver no sítio do costume. Era assim desde que se sentia mulher. Em criança sentia uma atracção natural por ele, aproveitavam todos os momentos que podiam para estar juntos. Não era fácil! Na escola as raparigas estavam num lado e os rapazes noutro, os recreios eram separados e rigorosamente vigiados, a doutrina era dada ainda com mais rigor nesta separação. Mas sempre que podiam lá arranjavam maneira de se encontrar, nos jogos de criança, no “esconde-esconde”, no “está quieto”, saltando juntos a caminho da escola ou quando vinham para casa, ao fim da tarde. Agora a atracção é outra, os sentimentos mudaram. Em criança sentia-se bem quando o via. Não sabia explicar porquê, nem isso interessava, corriam um para o outro, depois um fugia e o outro corria na mesma direcção, rebolavam-se na poeira do chão, no macio da palha, molhavam-se na água suja do poço d’além.

Os anos foram passando, o corpo crescendo, e numa tarde de agosto tudo mudou. Ia com a mãe à horta, viu-o sem que ele a visse. A mãe parou para conversar com outra mulher que tinha encontrado no caminho. Olhou para ele e de repente viu-o como homem. O seu coração deu um pulo, fechou os olhos, sentiu-se também como mulher. Tinha acabado a infância, eram adolescentes os dois, um homem e uma mulher, dali para a frente nada seria como dantes. A mãe chamou-a, continuaram o caminho, ainda olhou para ele, continuava distraído, ainda bem que não deu por nada. 
Tudo ficou confuso nos dias que se seguiram. Chegou o domingo, e à tarde, como sempre, dos lados do Terreirinho e do Quinteiro Grande, vinha o som do realejo e das cantigas que rapazes e raparigas cantavam nos jogos de roda:

Lá cima vem o comboio,
Lá baixo vem apitar,
Traz a gasolina toda,
Vem capaz de rebentar

Vem capaz de rebentar,
Isso não é bem assim,
Só falas quando me encontras,
Não dás passadas por mim.

Não dás passadas por mim,
Não dás passadas, não, não,
Só falas quando me encontras,
Amor do meu coração.

Amor do meu coração,
Quanto tenho te darei,
Darei-te a luz dos meus olhos,
Cega por ti andarei.

Os garotos andavam por ali aos pulos e até àquele dia era o que eles também faziam. Mas agora? Dum dia para o outro deixou de fazer sentido andarem naquelas correrias de criança. O que iam fazer? Iam para a roda dos grandes, assim, sem mais nem menos? Olhou para ele, viu que estava tão confuso como ela. Sem darem por isso afastaram-se de todos, estavam sós. Olharam um para o outro sem saberem como agir, viu-o corar e sentiu também a cara a arder. Que se passa?

Perderam a noção do tempo em que estiveram assim naquele silêncio. Até que sentiu a sua mão na dela, apertou-a, ele apertava a dela ainda mais. O fogo da cara desceu para o peito, inundou-lhe todo o corpo, era um fogo doce. Deixou de ver, sentiu o chão a fugir-lhe debaixo dos pés, imaginou-se a voar. Voou por cima dos montes, das searas, do mar, sentiu-o a seu lado a voar com ela. De mãos dadas voaram os dois, cruzaram o espaço, até que se juntaram num corpo só. As suas mãos já eram as dele a percorrer-lhe todo o corpo, viu-o olhar para ela, os rostos aproximaram-se, os lábios tocaram-se, o sol explodiu. Sentiu a luz do sol cair-lhe em cima. Como era doce a luz do sol…

Abriu os olhos, sentiu-os húmidos. Riram-se os dois e fugiram para onde andavam todos os outros. Tinham dado o primeiro beijo.

Entraram na roda com o coração aos pulos, nem deram pelos sorrisos e os olhares de cumplicidade que os outros pares trocaram. Eram namorados, saltaram, dançaram, cantaram com todo o vigor:

Oh Matilde, sacode a saia,
Oh Zé alevanta o braço,
Deita o joelho ao chão, oh i oh ai,
Põe-te a pé, dá-me um abraço!

Põe-te a pé, dá-me um abraço,
Dá-me também um beijinho,
Dos pares que andam na roda, oh i oh ai,
O meu é o mais azadinho!...

Corriam mais que todos os outros, aquele dia tinha que ser eterno, aquele baile não podia ter fim. O sorriso não lhes saía do rosto, acabava uma cantiga, vinha logo outra, queriam estar assim para sempre:

Ora mexe, casaquinha mexe,
Ora mexe, casaquinha fina,
Quanto mais a casaca mexe,
Mais eu gosto da menina!

Mais eu gosto da menina,
Mais eu gosto da donzela,
Ora mexe, casaquinha mexe,
Ora mexe casaca amarela.

Quando o realejo se calou, era já o fim da tarde, caiu-lhes a realidade em cima. A mãe dela estava já pela primeira vez ao pé de todas as outras mães, vinham buscar as filhas, que dali para a frente, com a noite a cair, o lugar das raparigas era em casa.

Os rapazes, esses tinham outra liberdade, que sorte a a deles!...


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