Benlhevai

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Capítulo IX
Adeus, Carolina


Amanhã, sexta-feira, vou lavrar a terra que falta para a sementeira. Não me quero fazer lá velho, tenho que vir a tempo de ir ter com a Carolina. O sítio é o mesmo de sempre, a caminho da fonte. À tarde resisti à tentação de ir directo a casa dela dar-lhe a notícia. Ainda estive vai que não vai, chegar a casa, bater à porta, pedir a quem a viesse abrir para chamar a Carolina, olhar para ela e dizer-lhe: “-Já vou na segunda”.

Ia sentir as palavras abafarem-se na minha garganta, ia ver as lágrimas escorrerem-lhe pelo rosto, íamos ficar ali presos ao chão sem podermos sequer juntar as mãos e deixar que fossem elas a falar:

- Nada nos irá separar, nem o tempo, nem a distância, nem o silêncio dos dias que se vão seguir. O amor é assim, faz-nos olhar para além do que está a acontecer, leva-nos para um futuro que tantas vezes já planeámos.

Não fui e já me arrependi um cento de vezes. Não consigo dormir, penso na partida, nas despedidas, no escuro do que se me apresenta à frente. E Carolina, em que pensará ela neste momento, se ainda nem sabe o dia da partida? Que sonhará, quais serão as suas angústias, os seus medos, que pesadelos a estarão a atormentar? Quem me dera tê-la aqui, planear a viagem com ela, levá-la comigo, apagar este escuro, enchê-lo de luz…

Foi neste turbilhão de emoções que me perdi na noite, não sei se dormi se estive sempre acordado. Os sonhos tumultuosos que vivi dizem-me que dormi durante algum tempo, as olheiras dizem-me que não. Viro-me para a porta e vejo que o dia se começa a mostrar. Tenho que me levantar, o dia é de lavoura, vou ter tempo para pôr todos estes pensamentos em ordem, encontrar uma maneira de mostrar à Carolina o lado positivo desta separação, que à nossa frente está um futuro melhor, que esta partida é o início da construção dos alicerces duma vida inteira que vamos percorrer lado a lado.

O dia passa-se assim, nesta tentativa de arranjar argumentos para que Carolina fique tranquila e com a certeza de que muito em breve a viria buscar. É isso que quero, é isso que vai acontecer!

Ainda a tarde vai a meio e já estou de regresso. Amanhã virei terminar o serviço, hoje tenho coisas bem mais importantes a tratar. Faço um desvio pela rua da Carolina, quero que me veja para saber que são horas de ir à fonte. Chego a casa, trato dos bois e nem vou a casa, corro para o sítio onde todas as tardes nos encontramos. Pouco tempo tenho que esperar, passados uns instantes sinto os passos de Carolina:

     - Quando é? 
     - Segunda. Já sabias que o dia estava marcado?
     - Quando passaste há bocado e da maneira como me olhaste, logo vi...

Falámos então de tudo, fizemos juras de amor, nada nos podia separar. Segunda-feira ia ser um dia triste para nós, mas necessário para concretizar todos os nossos sonhos. Percorremos todos esses sonhos com a vontade de os realizar, terminámos com a certeza de que o futuro estava ali à nossa frente. Aproximava-se o último obstáculo para o atingirmos e vencendo-o, abria-se um oceano de águas calmas, cristalinas, onde íamos navegar.

Ambos tínhamos a noção de que não era isto que queríamos, mas Carolina percebia bem a inevitabilidade desta partida. Vezes sem conta eu lhe explicava o que se estava a passar lá longe, em África. Angola estava já a ser fustigada pela guerra, que não tardaria a espalhar-se pelas outras colónias, principalmente Moçambique e Guiné. Noutras colónias doutros países isso já tinha acontecido, era inevitável que chegasse às portuguesas.

Carolina perguntava-me como é que eu sabia estas coisas, eu lá lhe ia dizendo que era de Lisboa que vinham as notícias, sempre clandestinamente, pelo Eduardo, mais velho do que eu mas amigo inseparável, que andava na marinha. A explicação bastava-lhe, não perguntava quem as trazia, a ela o que a atormentava era a possibilidade da minha partida para a guerra, ver-me partir sem saber se regressava vivo. Isso não! Nem queria pensar nessa possibilidade, antes ver-me sair numa noite qualquer rumo a França. Aí havia um futuro que podíamos planear, a dor da separação tinha um sentido, não metia os horrores da guerra e da morte.

Foi assim que suavizámos a separação, dividimos pelos dois os males da partida, foi de mãos dadas que vimos o futuro tornar-se mais claro, para lá destes dias tão confusos.


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