Benlhevai

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Capítulo III

Carolina


O mais difícil vai ser dizê-lo à Carolina? Por mais que pense, por mais voltas que dê, não arranjo forma de construir uma frase com sentido, para lhe dar a notícia.

“ – Vou prá França, daqui a uns meses já posso vir, casamo-nos e levo-te comigo.” - Não! Bem sei que não pode ser. Se viesse era logo apanhado na fronteira e ia direitinho para a guerra.

“ - Vou prá França, e logo que puder mando-te dinheiro para ires ter comigo.” - Também não, bem sei que os pais dela não a deixavam ir assim pelo mundo fora.

Não arranjo as palavras certas. Se calhar não há palavras certas para dizer estas coisas, o melhor é deixar que seja o coração a falar, quando chegar a altura. Sinto que não posso demorar muito a dar-lhe a notícia, não quero que o saiba por outros, isso não! É hoje! É hoje que lho vou dizer, há-de ser o que Deus quiser.

Pouco comi ao almoço. Minha mãe não me perguntou porquê, porque já o sabia, meu pai não se mete nestes assuntos, nem sabe como me perguntar. Os meus irmãos não são ainda atingidos por estes assuntos, a guerra deles resume-se mais à divisão da comida no prato, metade para cada um, uma arrelia e logo uma risada, nem dão pelas sombras que pairam sobre todos nós.

À tarde, na hora combinada como todos os dias acontecia, lá vou esperá-la no caminho da fonte. Sento-me na pedra do costume, penso mais uma vez no que lhe vou dizer. Sinto então um vazio, nas ideias e no peito, penso em desistir. É insuportável esta dor da partida. Mas qual quê! Desistir e passar o ano inteiro, todos os anos, toda uma vida a trabalhar de sol a sol para os outros? Pedir à minha mulher, vai ser a Carolina, pois claro, que se mate a trabalhar para os outros? Ir agora na flor da idade para a guerra, para quê? Matar os terroristas? Mas são terroristas porquê? Por estarem a lutar pela sua terra?

Como seria bom não pensar nestas coisas, um dia fazer a mala, dizer aos meus pais “vou-me embora”, dar duas assobiadelas para disfarçar a tristeza da partida e pronto. Mas qual quê, tenho que lidar com todos estes sentimentos, dissecá-los, vê-los por cima, por baixo, por todos os lados. E como doem estes sentimentos!…

Sinto então passos que se aproximam. Conheço-os de cor, de tantas vezes que os esperei, outras tantas que os sonhei, são únicos, inconfundíveis. Depois, ainda que não os conhecesse, o coração diz-me logo de quem são. É sempre assim, ainda mal se percebem e já o coração bate, bate, só descansa quando a vejo, aí é um mar calmo que me inunda, é a paz que me conquista.

Conheço a Carolina desde que me lembro de ser gente, desde criança, ainda antes de ambos irmos para a escola. Fizemos o mesmo percurso escolar, começámos a trabalhar ao mesmo tempo, na azeitona fazíamos tudo para ir no mesmo rancho, nas malhadas, a mesma coisa. Éramos já amigos em criança, era uma amizade natural, assim continuou pelos anos fora.

Depois da escola, a infância foi ficando para trás e os momentos em que podíamos estar juntos foram escasseando. Íamos crescendo, as brincadeiras de criança começavam a ficar esquecidas, já não ficava bem andarmos por aí aos saltos, a jogar o “está quieto” ou o “anda na mula”. Eram agora outras crianças que jogavam esses jogos e nós entrávamos no mundo da adolescência, com outros interesses, outras inquietações, outros sentimentos.

É esta a altura em que a voz dos homens começa a modificar-se, em que se olha para a cara à espera que as borbulhas dêem lugar aos pêlos da barba, e para as raparigas com um sorriso malandro no rosto. Os comentários estre os rapazes são os mais atrevidos que o conhecimento permite. Aprendemos uns com os outros, um ouviu uma conversa, outro, outra e há sempre o mais informado que sabe tudo. É a esse que damos ouvidos, é ele que nos tira as dúvidas, postas sempre de maneira que dê a entender que nós já não temos dúvidas nenhumas, é só para partilhar conhecimentos. Nas raparigas deve ser mais ou menos a mesma coisa.

Um dia veio então em que eu e Carolina deixámos de ser crianças. Numa tarde de agosto olhei para ela e vi-a doutra maneira. Passou na rua, perto de mim, ia com a mãe. Pararam mais adiante, tinham encontrado alguém com quem conversar. Ela não me viu e se calhar foi por isso que eu a pude olhar com outros olhos. Perdi-me nesse olhar, imaginei-me a percorrer-lhe todo corpo, a mergulhar as minhas mãos nos seus cabelos, a acariciar-lhe o rosto. Fechei os olhos, a cara alegre de criança transformou-se então num rosto já adulto, lindo, a sorrir para mim. Imaginei-o junto ao meu, senti-lhe a respiração e no peito o contacto dos seus seios a desabrochar.

Abri os olhos, fixei-os no chão, envergonhado, como quem está a fazer algo de proibido. Senti um calafrio por todo o corpo, virei-me para o outro lado, ainda bem que ela não me estava a ver. O coração que batia com força começou a acalmar. Senti-me bem com a descoberta, eu era um homem e a Carolina era uma mulher. Ia olhar novamente na sua direcção mas vi que ela estava agora virada para mim. Fingi que não a tinha visto.



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