Benlhevai

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Capítulo XVI
Quaresma, as relas, o fito e o ferro

Capítulo XVI
A festa do Divino Espírito Santo

Maio é mês de flores, de sol e calor. Por vezes o tempo prega uma das suas partidas e então aparece o frio, lá se vai buscar o tal cepinho que se guardou para o mês de Maio e toca a acender o lume.
Normalmente é o mês da festa de Benlhevai, mas há anos em que o calendário também quer pregar uma partida, e então a Páscoa vem alta e a festa lá vai cair já em Junho.
O padroeiro de Benlhevai é o Divino Espírito Santo, e tem festa a condizer. Toda a gente tem uma roupinha especial para vestir, ou pelo menos aparece bem lavada nesse dia, ainda que tenha um ou outro remendo.

Nesse dia ninguém trabalha. Já noutro domingo qualquer ninguém se atreve a junguir os bois, quanto mais neste dia do Padroeiro! Também ninguém se atreve a pôr a fouce às costas, é ver o que aconteceu àquele que se vê na Lua. Foi apanhado num domingo a cortar silvas, e lá está ele com as mesmas silvas às costas, e é para sempre, segundo dizem.

A missa também é especial. Por estar tudo bem lavado não se sente aquele cheiro a suor, mistura de suores, que já não vem de lado nenhum em especial, mas sim de todos os lados ao mesmo tempo. E nesta missa ainda seria mais penoso, porque tem sermão, e daqueles que demoram muito tempo e põem lágrimas nos olhos de muitas mulheres. As mordomas dos altares também lavaram as rendas com mais primor, os vasos têm mais flores, os andores estão repletos delas, cada qual o mais bonito.
Todas querem que seja o seu o mais bonito, isto, é claro, não metendo nesta disputa o andor do Divino Espírito Santo. Este é especial, maior, mais imponente, e entre as flores leva até algumas notas de vinte, que são o resultado do pagamento de promessas de quem algum dia teve uma aflição, e em troca da solução para os seus males promete dar uma destas notas.

Então a procissão, não há palavras para descrever a sua beleza. Os estandartes à frente, que não podem ser levados por um caga-tacos qualquer. É preciso ter braços para aguentar aquele peso ao longo de todo o percurso. Então se há vento, é preciso puxar por todas as forças para o aguentar, e isto sem que se faça cara de esforço, que era vergonha ouvir alguém dizer que fulano tal quase não aguentava com o estandarte. Vêm à frente dois homens, com importância na terra, porque aqui também vão exercer uma missão importante. Capa vermelha, bastão na mão, param e avançam, marcam o compasso. A seguir vêm os estandartes, primeiro o de Nossa Senhora de Lurdes, depois o do Sagrado Coração de Jesus, e finalmente o mais importante, o do Divino Espírito Santo.

Depois vêm os andores mais pequenos, o Menino Jesus, Santa Rita, S. José, S. Sebastião e S. Roque. Seguem-se os maiores, as Nossas Senhoras de Lurdes, de Fátima e do Rosário, o do Nosso Senhor, o do Sagrado Coração de Jesus, e finalmente lá vem ele, imponente, parece vacilante a pomba no seu caminhar, mas apenas porque os andoreiros não têm todos a mesma altura, e o passo não é, e nem pode ser, perfeitamente sincronizado, embora seja firme, o Divino Espírito Santo! É ele o centro de todas as atenções, é ele o dono da festa. A seguir aos andores vem o palio, o Sr. Padre debaixo dele, vem à sombra, e a esta hora até dá jeito, a Santa Custódia nas mãos, rezando e cantando. O palio é levado pelos senhores mais importantes da aldeia, ou aqueles que julgam que o são. Três de cada lado, os seus fatos mais reluzentes, para condizer com a importância do ato. Depois aquele mar de gente, primeiro os homens, e a fechar a procissão, as mulheres.

Tudo é majestoso. O ar está impregnado de cheiro a festa, cheiro a lavado, cheiro a flores espalhadas pelo chão, cheiro a colchas estendidas das janelas. No ar aquela melodia que enche os ares, que entra pelo coração adentro, que vem da parte final da procissão:

        "Queremos Deus! Homens ingratos,
        Ao Pai Supremo, ao Redentor!,
        Zombam da fé os insensatos,
         Erguem-se em vão contra o senhor."


E então o refrão é de por os cabelos em pé, porque ao som maioritariamente de vozes femininas junta-se agora o vozeirão grosso mas também melodioso dos homens. É uma multidão que canta:

         "Da nossa fé, oh Virgem,
        O brado abençoai,
        Queremos Deus, que é nosso Rei,
        Queremos Deus, que é nosso Pai ".

Tamanho acontecimento tem que ter segurança à altura. Todos vão compenetrados, ninguém ousa questionar o ato, muito menos pôr em causa a autoridade de quem a tem. Há no entanto alguns adultos atrevidos que, se não forem vigiados, não hesitam em ir por atalhos, o que é um sacrilégio. Toda a gente tem que ir direitinha na procissão, cantar quando é de cantar, rezar quando é de rezar, e nada de gestos inadequados. Mas é mais pela garotada que é preciso quem imponha a disciplina. Há que ter os olhos bem abertos, que até nem o diabo quis nada com eles.

Entra aqui o César, ou melhor, o Césaro, que entre o "queremos Deus" e o "que é nosso Rei", metia à pressa e com todo o vigor um "Anda para aqui, raparigo do diabo", ou se a ordem era mais urgente, ia mesmo um palavrão, pois era preciso chamar para o rebanho um garoto mais atrevido que ameaçava correr por ali fora.

Terminada a procissão, despiam-se as capas e arrumavam-se os estandartes e andores. Tudo ficava ali imóvel, a solenidade dos santos e santas desaparecia, era agora um amontoado de objetos. De repente todos lhes viravam as costas, mas não era por falta de respeito. A procissão tinha acabado, o cansaço via-se em todos os rostos, toca a andar, uns para a fonte, outros para a taberna, que era preciso afogar aquela sede que já não se suportava.

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