Benlhevai

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1956 – chegou o telefone a Benlhevai!

O hospital de Vila Flor e a senhora Isabelinha


Mas nem tudo era desgraça. Em 1956 chegou finalmente a Benlhevai o telefone. E que saboroso era ver o ti’ Eduardo do Sóto a meter as cavilhas na instalação telefónica, a dar à manivela, a chamar “Santa Comba, Santa Comba”, e quando finalmente conseguia ligação, a pedir para ligarem para o número tal de Lisboa ou Porto ou outro lado qualquer, e passado algum tempo, por vezes bastante, lá vinha de Santa Comba a boa nova “está a ligação feita, podem falar”. Quem falava fazia-o aos berros, que quem ouvia estava muito longe…

Os tempos eram de calma, dias grandes no verão, pequenos no inverno, nalgumas casas havia fartura de comida, noutras havia fartura de miséria, passava-se o ano a trabalhar no duro, e no ano a seguir tudo se repetia, tudo era igual. Havia assim que enfrentar os dias com alegria. Pobrezinhos mas honrados, por vezes a fartura era pouca, mas cantava-se, dançava-se, era uma ramboiada!

O regime gostava que tudo estivesse nesta calmaria, a igreja também. Ia havendo umas festinhas, na santa paz do Senhor. Uma delas foi a inauguração do hospital de Vila Flor, com todo o concelho mobilizado para que a festa fosse de arromba. E foi mesmo, todas as freguesias levaram a sua coreografia, as suas cantigas. A de Benlhevai foi das melhores, dizemo-lo nós que outros dirão o mesmo da sua. Uma marcha enorme, dezassete rapazes dum lado, dezassete raparigas do outro. Ia tudo bem ensaiado, há uns meses que se preparavam todos os pormenores.

Era o Júlio, o irmão do João Moleiro, que dirigia os ensaios, à tardinha, na ponta do Terreiro, onde havia mais espaço. Ao entrar no largo da cerimónia começa a cantar todo o cortejo de Benlhevai:

      “A mocidade de Benlhevai

      Aqui vai nesta animação,

      Trazer alegria ao nosso hospital

      No dia da sua inauguração.”

Agora são as raparigas:

   “Oh Benlhevai milagroso

   Tu és mesmo um amorzinho.

   Dás a todos os romeiros

   Muito pão, saúde e vinho.”

A seguir cantam todos:

   “Venha mato grosso p’ra gente queimar,

   O hospital é nosso, foguetes no ar,

   Já andam na roda Manuéis e Marias,

   E cada Maria já tem o seu par.”

É lindo de se ver. As roupas todas iguais, flores presas aos vestidos das raparigas em desenhos que dão um colorido especial. Todos com as mãos no ar. Agora cantam os que encabeçam o cortejo, o Américo Ribeirinha e a Lurdes Fernandes:

   “Um cortejo lindo passa na estrada,

   E os anjos sorrindo da nossa sestada.”

Um instante, e todas as raparigas cantam em coro, vozes afinadas de tanto treino e entusiasmo:

   “Nós somos as moçoilas

   Flores de papoilas

   Do nosso Benlhevai,

   Cantai raparigas

   Dobrai as cantigas

   Larai Lai Larai”

Os rapazes, cheios de proa, não querem ficar atrás das raparigas :

   “Nós somos os rapazes

   Fortes e audazes

   Do nosso Benlhevai,

   Levamos a vida

   A cantar o dia a dia

   Larai Lai Larai”

Trabalho, alegria, obediência. Contava-se aquela história que uma família onde reinava a harmonia ficou de repente com dinheiro duma herança duma tia rica. Dinheiro pr’aqui, dinheiro pr’ali, começaram as discussões. Onde havia harmonia quando a fome apertava, havia agora desordem quando a barriga estava cheia. Moral da história, era melhor ser pobre e haver paz em casa, do que ser rico e andar toda a família numa discussão permanente. Prega frade…

Esta era uma história que se contava aos pobres, que não há memória de haver uma família rica que desse tudo o que tinha aos mais necessitados para melhorar o seu ambiente familiar. Já nos contentávamos com a generosidade da senhora Isabelinha. Se todos os ricos fossem assim já nos dávamos por felizes. Não havia um pobre que saísse da sua casa com fome, trabalhava naquela casa muita gente e havia fartura de comida e vinho para todos. Mereceu e bem aquela homenagem quando morreu, toda vestidinha de branco e aqueles versos tão bonitos que o Alberto Sousa escreveu para ela!

Foi um funeral emotivo. Veio gente de todo o lado, gente conhecida e muitos pobres de pedir que por aqui passavam sabendo que não iam embora com fome, havia sempre uma malga de caldo, umas berças, um gaspacho qualquer ou um benairo de pão com figos. Era assim a senhora Isabelinha, e também aqui lhe prestamos uma homenagem especial. Nunca se ouviu a quem a conheceu o mais pequeno reparo à sua conduta. Pelo contrário, todos lembram a sua memória com respeito, alguns e algumas chamam-lhe santa. Nasceu num berço de ouro, atendendo às condições da época, mas nunca fez como os demais que nasceram com a mesma condição. Distribuía o que tinha, a todos atendia, a todos dava trabalho e sustento, e havia sempre pão e vinho na sua casa para aqueles que nada tinham. Era daimosa, já tinha nascido com este dom.

Eram tempos duros mas alegres. O ano começava com alegria e terminava da mesma maneira. Nesta história é assim, haverá outras que contarão o outro lado, os barulhos com que sempre acabava a festa da Trindade, à noite já se sabia que os rapazes das aldeias aqui à volta se iam engaliar, os de Benlhevai incluídos, que quando saíam já iam preparados para isso, e os outros também, com uns bons jasteiros que ficavam escondidos ali à mão. Também não são para aqui chamadas as facadas que sobressaltavam a noite, os ais que saíam das casas quando os homens aí chegavam depois duma noitada a jogar à batota e com os goldres cheios de vinho, a algazarra quando se acebavam dois cães, ou quando um deles passava pelo povo e em vez dum “cucho, boca!”, que era sinal que lhe iam dar alguma côdea para comer, vinha uma pedrada, e se lhe acertava era risada geral, a facilidade com que se enforcavam quando já não eram úteis, a porrada que levavam os bois, os machos e os burros quando não faziam exatamente o que os donos queriam.

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