Capítulo 09– Heroínas e heróis de Benlhevai
A vida era assim, feita de coisas boas e más. De vez em quando aconteciam umas desgraças, um que caía duma oliveira abaixo, um que ficava debaixo do carro de bois numa ladeira qualquer, como o Felismino, outra que tinha um qualquer acidente, como a Maria Cândida que caiu da varanda abaixo, escorregou nas maçarocas do milho que aí estavam a secar, e disso veio a morrer. Outros morriam em consequência de fenómenos da natureza, hoje já estamos defendidos de muitos deles, mas nessa altura não.
Para a maior parte dos que cá viviam, o mundo começava e acabava em Benlhevai. Alguns, poucos, tinham passado para lá deste mundo. Uns até tinham ido para outros países, para a guerra ou a trabalhar para França. Também havia um ou outro que tinha chegado ao Porto, mas os que saíam e realmente traziam notícias que faziam sentido eram os que iam à feira dos quinze ou dos vinte e oito a Vila Flor, à feira de Mirandela a vender um reco ou uma junta de bois, a pé, claro, que poucos eram os felizardos que iam vender miudezas, uns queijos ou umas pitas, e já podiam ir no comboio de Frechas para Mirandela. Havia ainda viagens mais longas a pé, à feira de Moncorvo, de Mogadouro, de Chacim ou dos Chãos.
Para essas feiras levavam que vender e notícias para dar: “Fulano já morreu, foi uma ferida ruim que lhe apareceu. Beltrano casou-se, foi por volta das castanhas do ano passado que o padre leu os banhos na missa. Cicrano ficou aleijado, andava a levantar uma esbarrada e uma pedra caiu-lhe em cima duma perna. Foi um milagre, se lhe caía na cabeça, não escapava”. “Ora que rico milagre”, diz o outro. “Milagre era que a pedra mudasse de rumo a meio do caminho e não lhe acertasse!”
Na volta traziam notícias dadas por outros feirantes, doutras terras: “Uma trovoada, pelas segadas, levou tudo, anda toda a gente a ladrar com a fome”. Toda a gente, é uma maneira de falar, os ricos levaram de renda o pouco que ficou, esses não passam fome! “Os lobos comeram metade do gado de Fulano Tal. Era um dia de Inverno daqueles cheios de cinceno e nevoeiro, foi uma desgraça!”
Se não houvesse casamentos só se contavam desgraças. Dos nascimentos não se falava, eram tantos que nem notícia eram, só se fosse pela morte dos que nasciam ou das mães, e isso acontecia a cada passo. Para além destas notícias só vinham aquelas escritas em verso nos versos, que eram uns panfletos que os cegos ou aleijados vendiam nas feiras, apregoando a notícia:
“Foi no lugar do Pereiro, freguesia de Argeriz,
Um homem matou o filho, porque a sua sorte o quis.”
Estes versos eram enrolados e metidos entre o chapéu e a respectiva fita, e como se vê as notícias da época eram muito parecidas com as de hoje em dia; tantos mortos num acidente, tantos desalojados com um furacão, o IVA e outros impostos vão subir outra vez, a filha do senhor ministro casou-se com o filho do presidente, estiveram centenas de convidados a comer e a beber todo o santíssimo dia e toda a santíssima noite à nossa custa. Nessa altura como agora só as desgraças eram notícia.
As notícias eram assim dolorosas, na maior parte dos casos. Morria-se por tudo e por nada, às vezes a tirar um dente, que era tirado a frio, diga-se, a anestesia era a aguardente que se bebia para amortecer a dor. O barbeiro pegava com unhas e dentes a uma troquês, metia-a dentro das boca do paciente, e enquanto este berrava, arrancava o dente o mais rapidamente que podia. Por vezes, pouca sorte, não saía o dente que doía, era um são que vinha agarrado ao ferro.
Outras vezes era uma ferida que se agravava, um ar que dava, uma faísca que caía.
Isto a propósito de quem, tendo nascido em 1926, casou e tinha três filhas pequeninas quando, 33 anos depois de ter nascido, num dia de festa do Divino Espírito Santo, 17 de Maio, morreu fulminado por uma faísca. Vamos dar neste caso nomes diferentes aos intervenientes neste episódio dramático, porque ainda não passou muito tempo, as feridas ainda estão por sarar.
Vamos dar ao casal os nomes de Pedro e Helena. Naqueles anos, década de 50, eram temidas as trovoadas de Maio, armavam-se de repente, e eram assustadoras. No fim da manhã desse dia assim foi, começam a aparecer umas nuvens enroladas, encasteladas, cada vez mais negras, e em pouco tempo o céu fica escuro, parece de noite. As andorinhas voam baixinho, aflitas. Cai uma faísca, não muito longe, porque logo a seguir ouve-se um esterrinco. Caem as primeiras gotas de chuva, grossas, que levantam o pó e trazem aquele cheiro a terra molhada. Nova faísca e quase em simultâneo outro esterrinco, forte, que faz doer os ouvidos e tremer o coração. O Pedro, que vivia no Torrão, vai a correr acima à eira, tinha lá deixado o macho preso. O macho estava inquieto, e quando o Pedro está a tocar na rédea, nova faísca e esterrinco em simultâneo.
O Pedro já não o ouviu, a faísca cai-lhe em cima, fulmina-o, queima-lhe o corpo. O macho está mesmo ao lado e nada sofre. Helena, à porta de casa, fica aflita, não se apercebe bem do que se passou. Corre, sente-se cansada, corre, quase que se abafa com o esforço, mas corre mais, mais, o coração treme, as lágrimas soltam-se, um grito sai, lancinante. A vida acabou ali, fica tudo escuro, o seu Pedro está ali tombado, morto. Trazem-no para casa, a senhora Marquinhas, mulher do Abel “Nestor”, ainda lhe dá uma injecção, tentam dar-lhe vida, mas esta já ali não estava. Helena chora, as meninas choram, que vai ser de nós.
Durante os dias que se seguiram todas as lágrimas foram derramadas. A vida é por vezes cruel, mas seja como for a sua roda não pára; é preciso olhar em frente, sempre em frente. Só à noite, na solidão da noite, é que se pode olhar para trás, deixar o coração falar, e então há sempre mais umas lágrimas que saem de mansinho, outras vezes em catadupa, seja de que maneira for a dor da recordação é sempre a mesma.
Algum tempo depois, logo que pôde, Helena empreende a missão que já tinha planeado. Olha para as filhas, sente um enorme aperto no coração, dá um beijo a cada uma delas, aperta as três junto ao coração e sai. As filhas ficam em casa. A vizinha, sua irmã, e o resto da família que por cá fica, encarregam-se de olhar por elas, de as ajudar quando precisarem. Três meninas que têm que ser mulheres à força.
Passados uns meses, logo que pôde, regressa Helena de França, onde tinha trabalhado dia e noite, noite e dia. O patrão tinha-lhe arranjado os papéis, ou seja, um contrato de trabalho, indispensável para poder vir e levar as filhas. Era ao que vinha. Foram então as quatro para França, que aqui não tinham futuro algum. Naquele dia, 17 de Maio de 1959, morreu o Pedro, nasceram quatro heroínas em Benlhevai.
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