Capítulo  I
          Benlhevai,  1962
Era  uma tarde longa e quente, daquelas que Setembro tão bem sabe fazer. A terra  queimava, sedenta de chuva que tardava em cair. As noites traziam já uma brisa  que acalmava o corpo e refrescava a alma, mas nem por isso era bem-vinda, pois  que secava ainda mais as terras e toda a natureza já tão ressequida. As manhãs  acordavam menos secas, havia algum orvalho a salpicar as folhas, mas logo desaparecia  quando os primeiros raios de sol lhes caíam em cima. 
            -  O que valeu foi a chuvada que veio logo a seguir à festa do Cabeço, dizia o  Alfredo que, mesmo sem ver, sentia melhor do que qualquer um estas desventuras  do tempo. A solidão da noite, que para ele nunca acabava, apurava outros  sentidos e dava-lhe o tempo, muitas vezes demasiado tempo, para registar cada  momento que vai moldando a evolução da vida. 
            A  festa do Cabeço é sempre a 15 de Agosto e chamamos-lhe assim porque, sendo a  festa da Senhora da Assunção, se faz naquele monte imponente, mesmo ao lado de  Vilas Boas, ficando a capela bem lá no alto, onde termina o enorme escadario  que começa no largo onde ficam os carrinhos, as cadeirinhas e as doceiras.
            Essa  chuvada foi há quase um mês, a folha dos castanheiros e das oliveiras já está  torcidinha com a sede, as castanhas queriam crescer dentro dos ouriços e não  têm alimento para tal, a azeitona queria água para engordar e nem a vê. Que bem  calhava agora uma boa noitada de água, ia fazer mal aos figos que estão a secar  e aos que estão nas figueiras, que assim que lhes caem umas gotas de água em cima  arreganham logo todos, mas paciência, não se pode ter sol na eira e chuva no nabal. 
            As  andorinhas já fizeram a última criação, estão a preparar estes filhos para rumarem  a sul quando o vento estiver de feição, daqui a um mês, mais dia, menos dia. O  cereal já está na tulha, o que veio da malhada menos o que foi levado logo no  dia seguinte pelos donos das terras a quem estão arrendadas. A meda era grande,  a colheita não foi má, mas pouco ficou para levar ao moinho e que servirá para cozer  o pão durante o ano inteiro. As batatas estão na adega e as cebolas também lá  estão, uma dúzia delas em cada cabo, que é uma espécie de trança feita com um  bancelho de palha, onde se vão prendendo as cebolas por ela abaixo. Estes cabos  estão pendurados na trave, não estão em contacto com o chão. Para a arca hão-de  ir os figos que já estão a secar nas hortas, bem juntinhos, estendidos por cima  da palha que se estendeu no chão para os proteger da humidade da terra. Ao lado,  mais palha com caranguejas por cima, que estão também a secar e têm já aquela  cor negra que quer dizer que estão docinhas como o mel e prontas a guardar. 
            Os  feijões de horta também já estão em sacas de pano, os brancos, os vermelhos e  os canecos. Destes, dos canecos, também se guardam alguns com as casulas, que  servem, tal como as balofas, para secar e guardar para o inverno. São as  casulas secas, nalguns lados chamam-lhes cascas, e que bem sabem, cozidas nas  noites frias de inverno, bem temperadas com azeite e acompanhadas com um cibo  de chicha gorda, ou ainda melhor se for uma orelha ou a chicha do focinho do  reco que se há-de matar lá para princípios de Dezembro. Já se está a dar a  segunda volta aos feijões chícharos, daqui a nada escouçam-se, malham-se as  últimas casulas e guardam-se para o inverno, que é longo e frio. O homem e a  formiga é assim que fazem, guardam no verão para comer no inverno. É assim  todos os anos.
            Está  a acabar a época das colheitas, a das sementeiras começa já em Outubro. Termina  um ciclo, começa outro. Tudo se vai repetir durante mais um ano. Tudo é igual,  só varia o tempo, uma geada tardia, uma trovoada mais violenta, chuva a mais ou  a falta dela, num dia mau que pode deitar a perder o trabalho dum ano inteiro.  É assim a agricultura, é assim a vida de quem tira o sustento da terra. O  trabalho é muito, por vezes violento, aprende-se logo de criança; desde cedo  fica a fazer parte do dia-a-dia e assim há-de ser até que a velhice comece a  tirar a força aos braços, cansados de tanto labutar.
   É assim todos os dias, o trabalho começa logo  que aparecem os primeiros raios de sol, ali para os lados de Alfândega, e só  termina quando desaparece nas serras que nos separam de Vale Frechoso.  Descansamos ao domingo, depois de fazer ainda algum serviço de manhã, daqueles  que não podem deixar de se fazer, ir buscar comida para a cria, regar uns  feijões que não podem esperar por segunda-feira, encabar um sacho ou trazer para  casa um molho de lenha. Trabalhos menores, que o domingo foi feito para  descansar e que ninguém pense em pôr os bois ao carro. Não se falaria doutra  coisa durante muito tempo. Que vergonha!...
            Antes  do almoço vamos à missa. O toque dos sinos já espalhou alegria por todos os  lados, vamo-nos chegando, deliciados com o cheiro a roupa lavada. No adro põem-se  conversas em dia, os mais novos olham para as raparigas, rainhas dos domingos,  um dia por semana com direito a saírem mais enfeitadas de casa, bem vestidas,  mostrando com prazer roupas novas ou simplesmente as do costume, mas hoje bem  lavadas e passadas. Nós mostramos-lhes como ficamos bem com calças bem vincadas  e sapatos finos. O domingo põe-nos vaidosos, a nós e a elas, e ainda bem que  temos um dia por semana para essas vaidades. Uma risinha do lado delas, um  piscar de olho do nosso, às vezes é assim que começa um namoro.
            Depois  de almoço começa propriamente o dia de descanso. Na rua jogamos o fito e o  ferro, dentro do soto jogamos a sueca e o chincalhão. Num lado ou no outro  bebemos uns copos, na maior parte dos casos mais do que seria necessário para  matar a sede, e no fim do dia deitamo-nos com a cabeça zonza, mas com a alma  limpa e o corpo mais descansado. Noutros domingos jogamos à bola com uma equipa  doutra terra, num dia cá e pagamos nós a merenda, noutro dia lá e comemos a  merenda que eles pagam. Dê por onde der, domingo à tarde é sempre dia de baile.  É a altura em que podemos estar juntos, rapazes e raparigas. Que bem sabe o  domingo, quando acaba ficamos prontos para começar mais uma semana dura, igual  a todas as outras que já passaram, igual às que hão-de vir.
            Tudo  se tem passado assim neste pequeno mundo que é Benlhevai. Aqui nascemos,  crescemos, casamos, temos filhos, estes dão-nos netos e depois morremos. Já foi  assim com os nossos avôs, com os avôs deles, está a ser com os nossos pais e  assim vai ser connosco, se por aqui ficarmos. 
  É  tempo de quebrar este ciclo. Os tempos são de mudança por essa Europa fora e  esses ventos estão a chegar a Portugal. A Segunda Guerra Mundial deixou um  rasto de destruição por todo o mundo e nos anos que se seguiram começou a reconstrução.  Portugal está a ficar à margem desse processo, o desenvolvimento que se está a  verificar por essa Europa fora está a chamar-nos para lá. Em Portugal estamos  manietados, amordaçados, esmagados por uma ditadura que nos tem oferecido  miséria como presente e futuro, agora também nos trouxe uma guerra para  morrermos na flor da idade, uma guerra estúpida cujo inimigo é o nosso amigo  que luta pela independência da sua terra. 
            Não!  Não vou para essa guerra, e sim, quero ir para um país onde se respire liberdade  e onde seja recompensado o meu trabalho. 
            França! 
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