Capítulo XXIV
Passagem Para França
Finalmente aparece o
Passador. Vamos todos para a sala receber ordens. Dá-nos umas roupas e diz-nos que vamos apanhar uma carreira, um transporte público. Vamos com espanhóis e temos que fingir que vamos para o trabalho, como eles.
Não nos dá qualquer satisfação pelo tempo de espera, nem nós temos coragem de a pedir. Vestimo-nos, agarramos na mala e lá vamos atrás dele. Saímos pelo caminho que eu e o Carlos já conhecemos, passamos ao lado da casa da senhora das sopas de ovo, mais à frente vão aparecendo outras casas e uns dois ou três quilómetros à frente chegamos à paragem da carreira. Ao longe, não muito, vemos Eibar.
Por aqui vive muita gente. Nesta paragem já estão muitos à espera. Antes de chegar dividimo-nos em três grupos, para não darmos nas vistas. O
Passador tenta que nos misturemos com os espanhóis, dá uns jornais a alguns de nós para fingirmos que os lemos, entregou um ao Manuel “da Rosa” e passado algum tempo teve que passar por ele para virar o jornal, calhou só ter letras na página que estava a ser lida e estava ao contrário, que o Manuel não dava por ela, não sabe ler.
Passa uma carreira e leva a maior parte dos espanhóis que está à nossa frente na fila, logo a seguir vem a nossa. Entramos, o
Passador fica logo no banco da frente, como nos havia dito, e nós iríamos sair quando ele saísse, uns 50 quilómetros à frente, mais coisa menos coisa. A carreira arrancou e ficamos logo a perceber que as estradas por aqui são já bem melhores, já não andamos aos solavancos, embora haja muitas curvas, pois andamos numa zona montanhas, tudo verdinho, dando a entender que chove muito por estes lados.
Uma hora depois, ao chegar a uma paragem ainda antes de S. Sebastian, o
Passador levanta-se, pomo-nos todos em posição de sair e quando a porta da carreira se abre, lá vamos todos atrás dele. Entramos logo numa rua mais estreita, onde estão duas carrinhas paradas. São carrinhas de transporte de fruta, onde deixaram um pequeno espaço, entre a fruta e a parte do banco onde vai o condutor, para nos instalarmos. Ninguém diria que ali iam caber dez pessoas com as respectivas malas, mas lá nos instalámos, metade sentados dos lados, nuns bancos, a outra metade agouchados ou sentados nas malas, no meio. Não era nada confortável, mas tínhamos que passar assim a fronteira com a França.
Fecha-se a porta, fica tudo escuro, e a carrinha arranca. É desta que vamos chegar a França! Eu tinha perguntado ao
Passador quanto tempo demoraria a viagem até à fronteira. Menos de meia hora, disse-me ele, e eu fui contando o tempo. Gostava de sentir a passagem na fronteira. Para mim era mais que uma passagem física, era o fim duma caminhada clandestina, era a passagem para a liberdade. Queria senti-la, festejá-la interiormente.
Há uma altura em que sinto que a carrinha abranda, deve ser aqui, logo a seguir pára. Não há dúvida, devemos estar na fronteira. O coração começa aos pulos, não sei se pelo receio de sermos apanhados, se pela sensação de que estamos a passar para o outro lado, para o sonho. Não demora muito esta paragem, o
Passador tem tudo bem organizado, logo a seguir a carrinha põe-se em andamento, agora lento porque vai passar no lado francês. Aqui não pára, anda lentamente durante alguns segundos, depois sinto que aumenta a velocidade.
Entrámos em França! Sinto todo o corpo tremer, é a liberdade que me toca, o futuro que me aparece risonho pela frente. Aperto cada uma das mãos, quero festejar, penso em Carolina, são as suas mãos que quero apertar. Sinto de repente uma vontade enorme de abraçar a minha mãe, o meu pai, pegar ao colo a pequena Isabel, a minha irmã, acariciar os cabelos do Luís e pôr a mão nos ombros do Pedro, os meus irmãos. Quem me dera tê-los todos aqui a festejar comigo esta entrada em França.
A trepidação já mal se sente, as estradas são melhores, como tinha ouvido dizer. A carrinha avança, em grande velocidade, estamos todos a fugir do medo, da opressão. Mais uma meia hora e pára. Ninguém se assusta, era isto que estava previsto. Saímos, vínhamos nós na frente porque logo a seguir chega a outra carrinha. Aqui temos direito a descansar um pouco, fazer as necessidades, que bem precisamos todos, e mudar de transporte. Mudar é uma maneira de dizer, são outras carrinhas, estas já são francesas, mas no resto é a mesma coisa. Transportam fruta, lá no meio arranjam um espaço para podermos viajar escondidos, e agora trocamos. Quem ia sentadinho nos bancos vai para o meio, quem vinha no meio vai para os bancos, que é o meu caso. Temos que atravessar assim metade da França.
Foi uma viagem cansativa. Quase que não nos podíamos mexer, só de longe a longe é que a carrinha parava e era por pouco tempo, mal dava para fazer as necessidades. O cansaço já não nos incomodava, o pior tinha passado, agora era deixar correr o tempo, gastar a luz do dia, entrar na noite, a andar, sempre a andar.
E o tempo correu, os braços e as pernas começaram a doer, a dor foi aumentando, aumentando, até que adormeceu. Já mal os sentia quando, passadas umas horas, troquei de lugar com o Luís “Pedreiro”, que já ia mais morto que vivo. Já não deu para me sentar, fiquei de pé, meio curvado. Assim andámos muitas horas, pela noite fora, não sei quantos quilómetros percorridos, até que parámos. Era este um dos destinos, tínhamos chegado a Tours. Aqui ficavam o Luís “Pedreiro”, o Manuel “da Rosa” e o Chico “d’Eirinha”. Quase não deu tempo para as despedidas. Separámo-nos com um simples aperto de mão e votos de felicidades. Nem chegámos a ver se alguém estava à espera deles.
Vêm com um papel na mão onde está escrita a direcção dum parente do Chico “d’Eirinha”, saído de Benlhevai há uns trinta anos, numa vaga de emigração que houve na altura, por volta de 1930. Em Benlhevai falava-se que tinham partido nessa aventura muitos homens, entre eles o Arnaldo Pinto, o Adriano Pinto, o Inocêncio Azevedo, o Eurico Morais, o Abel Rebelo, o Acácio Macedo, o Artur Correia e o João Pedreiro. Uns regressaram a Portugal, outros ficaram e são agora quem nos vai acolher por estas terras de França.
Eu e o Carlos passámos para a outra carrinha que já estava à nossa espera, nós íamos continuar a viagem, para Paris. Estavam lá os de Santa Comba, que também iam para esses lados. Os de Bragança seguiram noutra direcção, alguma vila onde esteja alguém da terra deles para os receber. Nós ficámos agora mais aliviados, o espaço já dava para irmos todos sentados. Ainda conversámos um pouco, não muito que não havia vontade para isso e não havia muitas novidades para dar. Só a viagem em França tinha sido diferente, os de Santa Comba tinham vindo noutra carrinha, disseram que um de Bragança tinha feito a viagem toda de pé e quando saiu em Tours ficaram sem saber se estava desmaiado ou morto.
Também não havia motivos para conversar.
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