Capítulo XX
Por Montes e Desfiladeiros
Adormeci sem dar por ela e agora acordo porque o Carlos me sacode com toda a força que tem. Pelos vistos estava ainda para dormir mais uma horita ou duas, mas não pode ser. Ainda é de noite, mas é assim sem claridade que temos que fazer os primeiros quilómetros. Para piorar as coisas dizem que esteve toda a noite a chover e está para continuar, que agora bem a sinto eu. O remédio é apertar o casaco bem apertado, o sombreiro há-de apanhar parte da chuva, a que não apanhar vai-nos cair no lombo, não há outro remédio.
Saímos um pouco às apalpadelas, mas uns metros à frente já os olhos se começam a habituar à escuridão. Vamos calados e nem era preciso que nos tivessem dado essas ordens, esta caminhada não puxa conversas, vamos todos em fila e o frio e a chuva não nos dão tempo nem vontade para esses luxos. As ordens foram mesmo para não abrir o bico, olhar sempre para o que vai à nossa frente. O de trás não conta, não interessava que deixássemos de o sentir, se caísse era com ele, se ficasse para trás ninguém podia parar para o ajudar. Era cada um por si, no fim iríamos contar para ver se faltava alguém.
Hoje é o primeiro de Novembro. Não sei como é aqui em Espanha, em Benlhevai é um dia especial. Começa o dia com a recordação dos que já partiram, por uns instantes lembramo-nos de quem nos deu o lugar, os nossos avôs, os pais deles, os avôs deles, gente que continuou a obra feita pelos seus antepassados, como nós continuamos a obra deles. Por um instante penso que estou a fugir dessa missão, deixei Benlhevai e os que lá vivem, vou para outro mundo que não conheço e que não me conhece. Depois convenço-me que não senhor, não fugi do meu destino, estou apenas a mudar o cenário dessa aventura, vou construir a história de Benlhevai noutro lado, aí vou continuar a honrar os que morreram, dar outros horizontes aos que hão-de nascer. É outra dimensão, esta que eu quero dar ao meu destino. Não o quero aceitar passivamente, quero ser eu a definir o seu rumo.
Se estivesse em Benlhevai quereria que não chovesse como hoje chove aqui. Hoje é dia de magustos, até as raparigas têm autorização de ir com os rapazes pelos campos fora, às castanhas, umas dadas outras roubadas, tem que haver quantidade suficiente para toda a gente. Arranja-se lenha, umas giestas, umas silvas, umas vides, qualquer coisa que faça brasas em pouco tempo. Misturam-se as castanhas com as brasas, com um pau a servir de ranhadouro vão-se mexendo, para assarem sem se queimar. Quando se calcula que estejam assadas junta-se tudo num montão, brasas e castanhas, cobrem-se com umas giestas verdes para ficarem abafadas e assim acabarem de assar. Depois, toca a descascar, comer, enfarruscar a cara uns dos outros, beber jeropiga ou aguardente para os mais valentes, rir, brincar, os namorados regressarem de mão dada até onde a privacidade do campo deixar. É um dia especial.
Como será hoje? Que fará Carolina? Vai com os outros ou ficará em casa por lhe doer a distância que já nos separa?
O pé escorrega-me numa pedra, censuro-me a mim próprio por me deixar levar por estes pensamentos. Não é o momento de me por a sonhar, agora o importante é manter toda a atenção neste caminho traiçoeiro.
Ainda não nasceu o dia. Continuamos a andar, continua a chover, não perco de vista o meu companheiro da frente e tento sentir os passos do que vem atrás de mim. Não foram essas as ordens, mas todos queremos que ninguém fique para trás. Entre todos já se foi formando um sentimento de equipa, a protecção que os de Benlhevai tentávamos dar uns aos outros foi-se alargando aos de Santa Comba, aos de Bragança, agora já todos nos conhecemos, todos temos em comum esta vontade de vencer as dificuldades, de chegar a França, trabalhar, ganhar dinheiro, regressar e cada um à sua maneira sentir o gosto da vitória, saborear a vida, repartir o êxito com quem um dia justificou a partida, esta mesmo que estamos a viver.
O caminho vai ficando mais difícil. Subimos e descemos montes, agarramo-nos às pedras que ladeiam o caminho, um lado só, porque o outro é o abismo. É aqui que não podemos tropeçar, um passo em falso pode significar a queda, essa queda pode significar a morte. Assim mesmo! A pouca claridade que vai mostrando os contornos do caminho é isso que esconde, um imenso desfiladeiro por baixo dos nossos pés e lá no fundo, para lá do que a vista consegue abarcar, é o desconhecido, a morte.
Cuidado! Ninguém diz uma palavra mas é esta que todos tentamos dizer, num grito que adivinhamos em cada garganta, um grito intenso, porque é feito de silêncio. A chuva não pára de cair, o que torna tudo mais difícil. Ainda bem que somos todos gente da terra, habituados a todos os temporais, à neve que nos ensina a caminhar sem vermos do que é feito o chão, à geada que transforma esse chão em vidro, à noite onde aprendemos a caminhar na escuridão. É por isso que nenhum de nós estranha a dureza deste caminho.
O silêncio começa a ser a melhor notícia, sinal de que não há percalços no caminho e ninguém fica para trás. Todos receamos que da escuridão irrompa um grito, que alguém dê um alarme ou faça algum gesto que nos sobressalte. Vamos caminhando a contar os passos, os minutos, as horas que tanto custam a passar.
Pouco a pouco vai surgindo o dia, a noite vai ficando para trás. É um alívi o podermos ver o caminho, as pedras que os nossos pés vão pisando. Começa a invadir-nos uma sensação de segurança, o peito vai-se enchendo de coragem. Vou na parte de trás do grupo e não é por acaso. O Carlos, novo como eu, ainda vai mais atrás. Somos a garantia de que ninguém se vai perder, porque os outros jovens vão lá na frente a rasgar o caminho, ao lado do Passador que o conhece.
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