Benlhevai

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Capítulo XIX

Miranda de Ebro


Alguns quilómetros antes de Miranda de Ebro a carreira parou. Para os portugueses era o fim desta viagem, o destino dos espanhóis era outro. Ali nos separámos, com um simples aceno de mão, igual ao que tinha servido de saudação quando nos encontrámos. Descemos, metemos os pés ao caminho e uns quinze minutos depois chegámos a uma casa onde estava programado pernoitar. Estávamos todos com cara de cansados, menos do esforço, mais do susto que tínhamos apanhado com a visita da Guardia Civil à carreira. Cada um comeu do que trazia, aqui não tínhamos ninguém à nossa espera e comida também não. O Passador foi-nos dizendo que estávamos numa região em que não podíamos dar nas vistas.

Com o passar dos dias a saca da merenda ia ficando mais leve. Comi dois ou três cacarelos e vi que se estavam a acabar. Haverá figos em França? Se calhar não, dizem que é muito frio por lá, o que não agrada muito às figueiras, que gostam de calor. Os cacarelos são os figos que secam na própria figueira, alguns já meio comidos dos pássaros, é só apanhá-los e comê-los. Só os há com fartura nos anos em que o calor vai por Setembro adentro. Os outros, os que se vão guardar para o Inverno, colhem-se logo que estejam maduros e é preciso pô-los a secar ao sol, sobre palha, que serve de protecção para não ficarem em contacto com a terra. Por Setembro, é uma fartura de estendais de figos, nos quintais e nas hortas junto às casas À tardinha recolhem-se, para os proteger da humidade do orvalho que se possa formar durante a noite e de manhã vão-se pôr novamente ao sol. Quando ficam secos são então escaldados em água a ferver, para matar algum bicho que por lá ande. Vão novamente secar durante mais dois ou três dias e ficam assim prontos para guardar na arca ou em sacas de pano. Com o passar dos dias vão-se cobrindo com uma espécie de farinha, criada pela doçura do próprio figo. São um petisco!

É com estes figos que se mata o bicho durante o Inverno. Nozes ou amêndoas nem toda a gente tem, figueiras, há-as por todo o lado e quem não as tem sempre arranja uma hora em que haja menos gente no campo para apanhar uns figuinhos à pressa nas figueiras de quem as tem.

O mata-bicho é a primeira refeição do dia, se é que se lhe pode dar este nome. A bem dizer é só para pôr qualquer coisa no estômago, porque refeição a sério é o almoço, lá para as nove ou dez horas, isto no Verão, porque no Inverno o dia começa mais tarde e acaba mais cedo. Os homens acompanham estes figos com um copinho de aguardente, as mulheres comem-nos enquanto trabalham, ou no caminho para o trabalho, com um cibo de pão que levam no bolso do avental.

As formigas guardam tudo o que podem para o Inverno, nós fazemos o mesmo. Figos secos, outra fruta que também se possa conservar ou secar, como as caranguejas, pêssegos de rachar, que mudam de nome depois de secos, cricas, que se diz sempre com um risinho malandro, uvas que se penduram na adega, castanhas guardadas no meio de folhas do próprio castanheiro ou escondidas da luz no meio de areia, amêndoas e nozes que já nascem protegidas pela casca. Se a tudo isto pudermos juntar uma boa colheita de batatas, feijões, chícharos ou de horta, cebolas, a pipa do vinho e a tulha bem atestadas e um reco que se mate em Dezembro, temos mantimento para todo o ano. Nem todas as famílias o conseguem, umas lá vão guardando de tudo um pouco, outras apenas guardam o pouco e é por essas e por outras que estes caminhos de Espanha se vão enchendo de portugueses com vontade de procurar fartura por terras de França.

Lembrei-me disto ao comer estes figos que trazia na merenda. Se comesse queijo, como alguns o estão a fazer, que bem lhe sinto o cheiro, iria pensar no trabalho que dá a fazer, desde a ordenha até ao dia em que se come. O pô-lo a coalhar, e é preciso ter o coalho ali à mão, pois para que isso aconteça já morreu um cordeiro que se alimente só de leite, portanto antes de ir para o pasto, que pelo estômago não pode ter ainda passado erva, e é o estômago que se vai encher de leite, pôr a secar e assim ser fabricado o coalho. Depois do leite coalhado é preciso metê-lo nos aros, um pouco de cada vez, espremê-lo lentamente, de preferência por quem tenha as mãos frias, custa mais a fazer mas fica o queijo com melhor qualidade, assim o soro vai saindo pelos buracos dos aros, que têm a forma com que o queijo vai ficar, maior se o aro é grande, mais pequeno se o aro faz um arco mais reduzido. Depois é preciso pôr os queijos a secar, numas tábuas penduradas do tecto, para assim apanharem mais ar e ficarem a salvo dos gatos ou ratos que lhe chamariam um figo se os pudessem acandilar.

É claro que não dão só trabalho, nesta fase. O soro que saiu foi para um tacho, que vai servir para fazer requeijões. Mas não vai todo, porque a parte do fundo fica com os marvalhos da coalhada, que se comem numa malga, bem migadinhos com pão. O que vai para fazer requeijões vai ser aquecido em lume brando, que vai fazer com que fique com uma nata espessa à superfície, que se vai pôr numas pequenas formas de lata, com orifícios por todo o lado para secar mais facilmente. São os saborosos requeijões. O soro que fica, donde já se tirou tudo o que havia para tirar, ainda se aproveita, para a cria ou para se comer como se comem os fundos, agora já com outro sabor, mais deslavados, por isso se lhe chama o soro pelado.

O queijo pode ser comido em todas as fases por que passa, desde fresco, meio curado, ou então, e é como eu mais gosto dele, já bem rijo. Para se conservar tanto tempo e apurar o paladar, molha-se com uma mistura de azeite e pimento vermelho, ou então guarda-se num pote mergulhado em azeite. Pode comer-se ao fim duns meses, mas conserva-se durante um, dois ou até três anos. Esmilha-se todo quando a navalha o tenta partir e cada bocadinho que se coma enche a boca com um sabor intenso, a pedir que seja bem apeguilhado com pão e abafado com vinho. Só quem o conhece é que verdadeiramente o sabe apreciar, tal a intensidade do sabor e sobretudo do cheiro. É claro que tem que ser feito com bom leite, antes de haver flores no pasto, portanto o mais tardar até fins de Março.

Hoje vamos ficar nesta casa. Os dias já são pequenos, daqui a nada é noite. Vamos dormir cedo, porque amanhã ainda vamos começar a nossa caminhada de noite. Ao nascer do dia já havemos de estar a romper por entre as fragas que nos vão aparecer pela frente. Vamos passar por desfiladeiros de meter medo. É o Passador que nos avisa, diz ele que é para não nos assustarmos quando os virmos pela frente.



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