Capítulo  XII
          Quintanilha
Chegámos a Quintanilha. Só o soube porque o  Passador o disse quando passámos perto do vulto dumas casas. Já há muito que  tinha perdido a noção do local onde estávamos ou da direcção  que seguíamos. A noite e o sono também não me deixavam perceber se passávamos  por aldeias ou se eram casas isoladas, aquelas que via aparecer ao alcance da  luz do carro. A minha cabeça tinha já deixado de funcionar, tudo era confuso,  irreal, fantasmagórico. 
Quando  o Passador anunciou a chegada a Quintanilha eu devia vir a dormir, dizem-me que  levantei a cabeça, desorientado e que perguntei se era Benlhevai. Nesse  instante era realmente a imagem de Benlhevai que eu via em sonhos, com gente a  acenar-me com lenços e a chorar, ouvia risos de criança, mas estranhamente não  via ninguém conhecido, nem os meus pais, nem os meus irmãos e por mais voltas  que desse não via quem tanto procurava, Carolina. Nesse sonho Benlhevai  tinha-se transformado numa terra estranha, eram amontoados de casas negras,  vindas não sei donde, doutro mundo, talvez. 
Senti-me  aliviado por ter deixado esse sonho. Olhei para a direcção que o carro seguia,  no escuro da noite percebi o vulto duma casa a aproximar-se e o carro parou.  Saímos todos, cada um foi buscar o seu saco e encaminhámo-nos, em silêncio como  estava combinado, para esse vulto, que era afinal uma corriça. Entrámos por uma  porta grande e fomo-nos juntar ao grupo que nos aguardava, uma dúzia de homens,  de pé, e outras tantas sombras projectadas na parede pela luz ténue dum  lampião. No chão, ao lado de cada um, o respectivo saco com uma muda de roupa,  alguma comida de seco, e uns maços de tabaco. Fui para junto dos meus  companheiros de Benlhevai, tive vontade de lhes perguntar como tinha corrido a  viagem, mas as ordens eram para cumprir, ninguém podia abrir a boca para falar.  Pareceram-me assustados, se calhar eles pensaram o mesmo de mim. Passei os  olhos pelos outros e as expressões que a luz do lampião me permitia ver eram de  gente perdida. Estávamos todos perdidos, atirados para a noite, para o  desconhecido. O Passador era a nossa salvação, era o pastor que todos íamos  seguir. 
Ali  ficámos uns minutos que me pareceram horas, até que chegou mais um grupo de  quatro homens. Eram os últimos a chegar, porque logo a seguir o Passador  fez-nos sinal para ouvirmos as últimas instruções. Íamos em fila atrás dele,  até à fronteira, que é num pequeno rio que nesta altura se passa com alguma  facilidade. É o rio Maçãs, que nasce em Espanha, a certa altura do seu caminho  faz fronteira com Portugal e lá mais para baixo fica só português e encontra-se  com o rio Sabor. Juntos hão-de passar já perto de Benlhevai, ali para os lados  de Moncorvo.
Mas  nada de distracções, agora o importante era ouvir o que dizia o Passador. Íamos  então em fila, cada um não podia perder de vista o que fosse à sua frente, se  alguém se perdesse ficava por sua conta e risco. Se a Pide nos descobrisse  antes de chegar a Espanha, ou a Guardia Civil já do lado de lá da fronteira,  ninguém podia dizer o que andava a fazer, ninguém conhecia ninguém. 
-  Mas isso não há-de acontecer. Que Deus nos ajude!
Começou  então a caminhada, éramos vinte homens à procura doutro mundo, com um longo e  difícil caminho para lá chegar, guiados por este Passador português, que nos  iria entregar a outro Passador espanhol. Eu ia no meio do grupo, calhou assim,  com os olhos cravados no que ia à minha frente, nas suas costas, nos seus pés  que pisavam onde eu ia também pisar, era mais seguro assim. Já não me lembrava  do cansaço, muito menos do sono. Nada disso agora existia, todas as energias  tinham que estar concentradas nesta caminhada. Imaginava uma longa fila de  vinte e um homens, vinte deles perdidos na noite a seguir um que sabia  exactamente qual o caminho a percorrer.
Assim  andámos uma boa meia hora, até que o que ia à minha frente parou. Sentia-se já  o som de água corrente, era certo que estávamos na fronteira. Não sabia que era  assim que acabava Portugal, sempre imaginei que houvesse um muro ou pelo menos  uma vedação. Nada disso, era apenas um rio chamado Maçãs, feito de água que não  se sabia a que país pertencia. Onde era o local exacto da fronteira? Se fosse  no meio do rio, metade da água era portuguesa e a outra metade era espanhola.  Para bem ser, não se deviam misturar, o que não era fácil. Com o movimento  descontrolado da água, cada gota podia estar permanentemente a mudar de  nacionalidade, ia por um lado do rio e era portuguesa, e logo a seguir ia pelo  outro e já era espanhola. Se fosse uma maçã era mais fácil parti-la, cortava-se  ao meio, o caroço também, era maçã dum lado e manzana do outro.
O  que ia à minha frente começou novamente a andar e eu deixei estes pensamentos  de lado para me concentrar novamente na caminhada. Senti a humidade a entrar  nos pés. Enquanto vim de carro tinham deixado de me doer, mas agora a água  veio-me relembrar que não tinha sido boa ideia, esta de trazer sapatos novos  para uma viagem assim. Agora não havia nada a fazer senão suportar a dor, por  mais intensa que fosse. O passo a seguir foi um pequeno salto para uma fraga  que estava já dentro do rio. Desta saltei para outra, depois umas pedras mais  pequenas, outra fraga e outra. 
Senti  lá atrás um barulho, que me pareceu de alguém que tinha caído à água. Coitado,  com este frio não deve saber nada bem. Tive vontade de olhar para trás, mas a  noite não me deixaria ver fosse o que fosse e também tinha bem presente as  ordens do Passador, cada um seguir sempre o seu caminho, independentemente do  que acontecesse a qualquer um dos companheiros. Foi com certeza alguma  escorregadela e como a água parece não ter muita altura, decerto que ocupou  rapidamente o seu lugar. 
Mais  umas pedras, outra maior, e a seguir pisei já terra firme, coberta por umas  ervas altas, iguais às da outra margem, só que as de lá eram portuguesas e  estas já são espanholas. Aqui não há misturas, estão em margens diferentes do  rio.
          
            
          
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