Capítulo V
A despedida
Sinto o coração a acalmar, é a Carolina que chega. Sorri para mim, damos as mãos, mais não é permitido, que está sempre gente a passar.
- Vou pr’á França!
Tinha pensado tanto na maneira como lho havia de dizer, e saiu-me assim, bruscamente.
- Há muito que estava à espera, - respondeu-me a Carolina com a mesma tranquilidade com que me diz todas as outras coisas. No entanto vejo-lhe os olhos a humedecer e de seguida as lágrimas a correr livremente pelo rosto. Senti uma vontade imensa de a abraçar, de lhas enxugar, mas fico imóvel. Ela passa o avental pela cara, encara-me de frente, está mais bonita do que nunca.
- E nós?
Conto-lhe então os meus planos. Em França ganha-se muito dinheiro. Logo que tenha o suficiente para começarmos a nossa vida, hei-de arranjar maneira de vir. Há-de estar tudo pronto para nos casarmos e depois vamos os dois para França.
- Queres casar comigo?
- Quero, mas tu não te vais perder por França?
Juro-lhe fidelidade e que o meu amor será eterno, ela sabe que é verdade. A Carolina jura-me fidelidade e que o seu amor será eterno, eu sei que é verdade. Não está ninguém a passar, podemos olhar-nos de frente dar as mãos. Um beijo a princípio fugidio, depois descontrolado, leva-nos para essa eternidade prometida. Meu amor, como dói a partida.
Não tínhamos mais nada para dizer. Carolina segue o caminho da fonte e eu vou directamente para casa.
- Meu pai e minha mãe, peço-lhes autorização para ir para França. Vou dizer ao Ricardo que conte comigo para o próximo grupo.
Em Benlhevai é o Ricardo que é o angariador de interessados para ir para França. Vai-os inscrevendo, sempre em segredo, pois claro. O passador tem destes angariadores em todas as terras e quando tem um número que justifique uma partida, são todos avisados do dia, hora e local de embarque. O Ricardo tem jeito para estas coisas, tudo o que precise de alguma organização e pouco trabalho, tem-no a ele por perto. Mesmo nas merendas normalmente é ele que vai tratando de tudo:
- Mê tu pões o pão, tu o presunto e tu o vinho. Mê tudo à caladinha, ouviste?
Este “mê” é uma expressão dele, qualquer frase começa sempre assim, e sendo ele a organizar, a parte que lhe cabe levar para a merenda são os dentes. Aqui na organização dos grupos para ir para França é um pouco parecido, vai ganhando algum dinheiro para um dia, é ele que o diz, se meter num grupo e ir também para França. O passador nem precisa de lhe dar o dinheiro, daqui a algum tempo mete-o num grupo, mais um menos um vai dar ao mesmo, e fica tudo pago.
No seu caso, bem vistas as coisas, vai ser um regresso às origens, uma vez que nasceu em França. A mãe, a senhora Joana, é de nacionalidade suíça. O seu verdadeiro nome é Giovanina, veio de lá fugida da guerra, da Primeira Grande Guerra, com o seu marido, António Magalhães, um português que trabalhava lá nos caminhos-de-ferro. Com eles vieram os quatro filhos, Ricardo, João, Francisca e Júlio, fugiram também da miséria e do caos do pós-guerra, directos para a miséria que encontraram em Portugal. Andaram a pedir esmolas por aí, até que chegaram a Benlhevai. Foram dormindo onde os deixavam, nuns quinteiros onde estivessem abrigados da chuva ou do frio, até que alguém lhes arranjou uma casa para viver. Tinha servido de forja, era um compartimento só, o chão era de terra batida mas tinha porta e telhado, era um lar.
O Ricardo é o mais velho de quatro irmãos, se calhar por ser o mais velho é que tem estas características de alguma tendência para a organização, ou então é por não ser muito arnazudo para o trabalho.
O meu pai está a par de todas estas movimentações. Também gosta de jogar um bom jogo de sueca nos sótos, e se as mulheres sabem todas as novidades quando vão lavar a roupa aos tanques de lavar, os homens é nos sotos que acompanham o dia-a-dia da vida em Benlhevai. Por isso não se mostra surpreendido com o meu pedido:
- Eu já tinha dito à tua mãe que não demoravas a fazer este pedido, - diz-me o meu pai, - já ando a tratar de te arranjar o dinheiro para pagares ao passador.
Não é fácil arranjar tanto dinheiro. Uma passagem custa oito contos ou mais, conforme o tamanho do grupo que se arranjar, é dinheiro que ninguém tem. Ninguém é como quem diz, ninguém dos que trabalhamos, porque os ricos têm esse dinheiro e mais algum. Emprestam pão à quarta, dinheiro a juros altíssimos, vendem o cereal que nos vêm buscar à tulha, as rendas que pagamos pelas terras que fazem o favor de nos arrendar. Digo favor e não é com sentido irónico, a necessidade é tanta que andamos a mendigar umas jeiras ou o aluguer dumas territas para podermos sobreviver. É a um desses ricos que o meu pai vai pedir o dinheiro, vai ficar a pagar os juros que lhe pedirem, vai ser mais uma despesa para a casa.
- O primeiro dinheiro que ganhar em França há-de vir direitinho para si, meu pai. É uma promessa que lhe faço, e o pai sabe bem que nunca deixo nenhuma promessa por cumprir.
O meu pai sabe que é verdade e orgulha-se disso.
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