Benlhevai

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Capítulo VI
A espera

Na tarde do dia seguinte, depois do trabalho da manhã, do almoço e de ter acomodado os bois, lá me vou até ao soto do Porfírio. Está muita gente, não é a melhor altura para falar com o Ricardo. Numa mesinha a um canto o Manuel Pedro e o Zé “Ferrador” jogam o chincalhão de mano, que quer dizer que jogam o chincalhão só os dois, um contra o outro. Esta mesa serve para tudo. Pequena, baixinha, de madeira grossa e forte, já lhe passaram por cima muitos copos de vinho, muitas latas de conserva de sardinhas e de atum, muitos pães e peixas de bacalhau. Dá também para jogar o chino, a sueca e à noite a batota, já viu passar de mãos muitas notas de vinte escudos, de cinquenta e até de cem. A esta hora do dia joga-se um lento e silencioso jogo de sueca ou um barulhento jogo de chincalhão.

Normalmente há ali alguém a contar os tentos, que na gíria se diz que “fica de João”, mas quando jogam estes dois ninguém tem resistência para tal. São muito bem capazes de estar uma tarde inteira a jogar, vão bebendo um copo de vez em quando, e no fim se alguém lhes perguntar quem ganhou, nenhum sabe. Se fossem outros a jogar, mais a sério, não faltava o Teixeira “Velho” a contar os tentos. Não se importava de jogar, cabia-lhe sempre a missão de árbitro. Fazia-o com total empenho e também com uma completa distracção:

- Então, ti Teixeira, quantos é que há e não há?

Esta pergunta apanhava-o sempre desprevenido.

- Ora, há… Nove e…

- Há doze de baixo e seis de cima – diz um do lado que está a acompanhar o jogo.

- “Ixo”, à “xerta”, eu já estava para o “d’jer”… - riem-se todos, e o Teixeira “Velho” também. Fala assim desta maneira, os “esses” e os “cês” transforma-os em “xis”, e os “zês” em “jês” É um “bô serás”, um “portugal velho”, este Teixeira. Se fossem todos como ele não havia arrelias nem barulhos, para ele está sempre tudo bem.

Ao balcão o jogo é outro. São horas da merenda, e nestas alturas há sempre um desafio para ver quem paga o pão. Pega-se num trigo de três têtos, que é um pão que vendem os padeiros, branquinho, constituído por três partes, que são como três pães pequeninos unidos de forma que têm o centro em comum. O jogo consiste em pôr o pão em cima do balcão, na beirinha, de maneira que um dos têtos fique de fora. Seguram-se os outros dois têtos com uma mão, e com o punho da outra dá-se um golpe seco no terceiro têto, de cima para baixo. Este golpe tem que separar este têto do resto do pão. Não é fácil, tem que se concentrar muita força nesse golpe. Assim se ganha ou perde a aposta, que o destino desse pão já está traçado desde o início, é para acompanhar uma peixa de bacalhau cru, umas azeitonas, e umas boas canecas de vinho.  

Merenda comida, companhia desfeita, e toca a andar, que agora à tarde ainda se vão malhar os feijões chícharos. À saída faço por estar com o Ricardo a sós:

- Já estou certo, mete-me lá no próximo grupo p’rá França.

- “Mê” está combinado, quando houver notícias p’ra ir lá te aviso. “Mê” já sabes, bico calado.

A partir de agora já sei que o aviso pode chegar em qualquer dia, a qualquer hora. Pode ser amanhã ou daqui a algumas semanas, por isso a minha mãe já me vai fazer a mala, vai pôr lá o que puder esperar esse tempo e o resto fica para quando vier o dia da partida. Também já vai tratar de me encomendar uns sapatos novos ao Albérico de Santa Comba, que é o sapateiro que faz sapatos novos, aqui nas redondezas. Logo que possa hei-de passar por Santa Comba a dizer como é que os quero. Ainda não há muitos anos que o faço, porque em pequeno era a minha mãe ou o meu pai que, quando iam a Santa Comba, me tiravam a medida do pé, com um baraço ou um pau, cortavam-no com o comprimento certo, e era o suficiente para o Albérico fazer os sapatos. Só era preciso dizer se eram finos, para os domingos, ou grossos, que eram os que serviam para todos os dias.

Vou para casa com um sentimento de derrota. Já disse à Carolina que ia para França, os meus pais, embora já o soubessem, ficaram agora com a notícia definitiva e também já disse ao Ricardo para me meter no próximo grupo. Está tudo tratado e não sinto alegria alguma. Pelo contrário, vou aqui com o coração apertado, com o sentimento de que me aconteceu algo de mal. Quem me dera não ter que fazer isto, quem me dera poder ter um futuro melhor aqui em Benlhevai, na minha terra. Como seria bom chegar amanhã ao pé da Carolina, dizer-lhe “-amo-te tanto, queres casar comigo?”, ela dizer-me “- também te amo, quero casar contigo”, os meus pais iam ficar felizes, os dela também, todos sabem que gostamos um do outro. Por minha vontade ia já amanhã pedir os papéis ao padre Manuel para começar a ler os banhos nas missas e depois do terceiro domingo, que os banhos têm que ser lidos em três domingos seguidos, íamos a Vila Flor, casávamo-nos pelo civil e marcávamos já o dia do casamento pela igreja. Lá para fins de Outubro estávamos casados.

Mas não, o meu destino vai-me levar para França, a Carolina vai ficar cá, sei lá quanto tempo, quantos anos vamos ficar separados. Os meus pais vão ver-me partir, mala na mão, lágrimas nos olhos e um peso no peito, uma angústia, uma incerteza no futuro. Que é isto, que partida é esta, porquê? Eu estou na flor da idade, nada me mete medo, quero trabalhar, quero construir um futuro para mim, para nós. Porque não aqui, onde há tanto que fazer? Porque é que tenho que caminhar quilómetros sem fim rumo a um país que não é o meu, porque é que o meu trabalho há-de servir para ajudar a fazer estradas, casas, fábricas nesse país e não no meu? Porquê?





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